Retirado da autobiografia de Vitor Ribeiro filho de Francisco Deocleciano Ribeiro e Ana Candida
Caçada
de veado no Retiro Boqueirão de propriedade da família Palma , sita em Santa
Rita.
Preliminarmente
, vale assinalar que o local em Referencia , naquele tempo – há cinco décadas
recuadas – era o que ainda é hoje;um grande reservatório de veados
“catingueiros”, e, como os poderes públicos cogitam de proteger a caça ,
instituindo “Parques de Reservas” lembro
a escolha daquele rincão como um dos que merecem ser estudados , visto
preencher os requisitos exigidos , não lhe faltando , nem mesmo a vastidão ,
pois ali poderão ser reunidos num só
bloco , para mais de 10 mil alqueires de terras , tiradas dos municípios de
Santa Rita e São Simão , cuja aquisição ficará em conta por se tratar de
terrenos de 2ª e 3ª categoria e onde não existem benfeitorias a se indenizar.
Deixando aqui o meu lembrete, prossigo a narrativa.
Exauria
1890 , quando achando-me em férias escolares , na “Fazenda Passa Quatro” ,
chega da cidade , o Quincas , meu irmão, dando-nos a alvissareira nova de haver
tratado com o nosso tio Pedro Ribeiro da Fonseca uma caçada para o dia seguinte, no Boqueirão. O motivo de
nosso alvoroço e da nossa alegria provinha do fato e ter o tio Pedro , quando
moço gozado da fama de grande caçador de anta, galheiro, e , principalmente ,
de onça , no sertão daquela zona, que tinha sido o meião encaixilhado pelas
serras de Santa Rita , São Simão e Jatai, de um lado , e, de outro , pelo “Mogi-Guassu”
, entre a embocadura do “Ribeirão Bebedouro” e o do “Jatai”, e , ainda mais,
era havido também como caçador de raça, puro esportista , o qual se inflamava
de grande intusiasmo ao observar o
instinto agudo , a subtileza do faro e a diligencia do cão , no modo de
procurar e perseguir a caça, e sobretudo
a harmonia do toque.
Pedro
Ribeiro era de estatura mediana , mas desempenado , possuindo um tórax de atleta ; era homem de pouca conversa , porem
muito exato em tudo quanto dizia. Dotado igualmente , de calma admirável , era,
no entanto , um destemido, pois, neste particular, contavam dele, os
contemporâneos , atos de coragem pouco vulgar...
Agora
, o que o velho ainda conservava , e em todo sua plenitude , constituindo para
ele verdadeiro orgulho , era o modo de incitar os cães , era o grito. Possuindo
uma voz de soprano ligeiro : voz fina, nítida , sem tremores e de grande
potencialidade , os seus gritos: “lá...
vai “, “lá...vai”, “iii...”iam longe...,de quebrada em quebrada , de vale em
vale, a tudo despertando a tudo
alegrando , com verdadeiras clarinadas!
Logo
após à chegada do Quincas , o Custodio, nosso cachorreiro, foi prevenido para
que se apresentasse , afim de sairmos bem cedo. Na manhã seguinte , mal os
galos começavam a amiudar os seus cantares , pusemo-nos a caminho e já nos
achávamos no alto da serra do Maneco Palma , quando o dia dava os primeiros
sinais de vida, espreguiçando-se muito ao longe...Ao iniciar a descida . demos
uns toque de buzina , sinal convencionado , ao qual o velho prontamente responde
com toque mais altos , porem harmoniosos
, tirados da sua buzina , que era de chifres inteiriços , ao passo que as
nossas eram metálicas.
Ao
chegarmos ao sopé da serra , onde nossa estrada cruzava com a que ia da fazenda
do tio ao Boqueirão , lá estava o velho , acompanhado de um filho , de mais
dois companheiros e da matilha. Após os cumprimentos e a troca de gracejos, com
os quais o tio procurava saber se havíamos passado sebo nas canelas dos nossos
cães, prosseguimos a viagem ate que , e ainda em boa hora matinal , chegávamos
ao local escolhido para a solta dos cães , que eram ao todo 24: 14 nossos e 10
do velho , ficando desde logo estabelecido que só a este cabia dirigir toda a
caçada.
Em
consonância com este critério , indicou-nos o mestre o alto de uma colina ,
onde deveríamos nos postar e não sair antes que ele lá chegasse. Do local em
apreço – explicou-nos ele – vocês poderão acompanhar todo o desenvolvimento da
caçada e ouvir todos os toques , tomem eles as direções que tomarem. Ao mesmo
tempo que nos dirigíamos ao ponto indicado , os dois eméritos caçadores, Pedro
Ribeiro e Custódio , desatrelavam os cães num rocio à margem do riacho. A
matilha , que estava composta quase que só de veteranos , penetrou pela mata
silenciosamente. Porem, pouco tempo depois , a cadela “Gazeta” , pertencente ao
Velho , dava sinais de ter encontrado uma trilha , a cujos latidos o dono correspondeu logo, com gritos
apropriados. Mas, não demorou muito para que o nosso baliza , o “Cupido” ,
também ensaiasse com certo vigor , denotando que o rastro que havia encontrado
era fresco. Dai em diante , instintivamente , a matilha foi-se separando em
dois núcleos distintos: um guiado pelo “Cupido” e outro pela “Gazeta” e pelas
direções que tomavam , não restava duvidas de que se tratava de dois veados. E,
a estimular a um e a outro ali estavam
os dois campeões do grito; Pedro Ribeiro e Custódio , com sua voz de tenor ,
volumosa e forte.
Do
nosso posto de observação, assistíamos, então , a uma cena , para nos
caçadores, simplesmente empolgante; presenciávamos um verdadeiro torneio , não
de oratória propriamente, mas de gritos. Aquela hora , já toda cachorrada trabalhava
alegre e afoitamente , a cujos ”ensaios”, ora o velho , ora o Custódio ,
correspondiam à altura , com vigor e entusiasmo , numa torcida frenética para
que ao seu favorito coubesse a palma da vitória, no levante da caça.
E,
pegando fogo , num crescendo de emulação e ruidosa alegria , iam as coisas ,
quando a “Certeza” , passando a finta no “Cupido” , surpreende o veado e,
desmandibulando-se toda , grita, geme fragorosamente , produzindo grande
assuada! A esse tempo , ouve-se o estampido da salva e as clarinadas e repetidos ecos dos gritos do velho tio
Pedro , em cujas manifestações de alegria ele punha toda a emotividade de sua
alma de caçador , e, sem interromper a corrente de ecos da salva do Custódio ,
e os reboos de seu possante gritos tintinabulam também pelo Boqueirão abaixo!!
Nesse
momento , por toda parte , ouve-se ganidos de cães, que, em carreiras
atropeladas , procuram juntar-se à
“Certeza” , que já em toque ritmado , ganha o espigão.
A
corrida, à qual não faltou um só cão ,
desenvolveu-se animada e rumorosa pelo dorso afora da colina.
De
onde estávamos , vimos, então, o Custódio tomar de salto o “Picaço” e, de trelas atadas à garupa , chapéu caído na
nuca , preso pela barbela , dar de rédeas, esporeando ao mesmo tempo o matungo,
que saiu rabejando ,e a todo galope, por desvio , afim de não perder o contacto
com a cachorrada. Nós, de cabelos arrepiados, com os assentos erguidos das
selas e os corpos apoiados somente nas pontas dos pés , nos estribos, e, ainda
sob a comoção produzida pela “Batida” da
“Certeza” e pelos gritos de “Levante” , expelidos pelos dois titans , mestres
em cinegética , ouvimos maravilhados a corrida que já ia longe , quando nos surge pela frente o velho tio Pedro, trazendo no
semblante o sorriso radioso da vitória. “ Pois- gritava ele- como foi, Quincas
, que o “Cupido” , e o seu baliza , deixou a cadela lhe passar à frente? “.
Encerrando
á pressa o dialogo , endireitamo-nos nas selas, fazendo menção de partir, a
cujo gesto o velho obtemperou:- “ Não ,
fiquemos por aqui mesmo; esse veado volta, já lhe conheço a carreira. Ouçamos o
toque e veremos”.
A
corrida, que a começo era volumosa e hilariante, à medida que se afastava do ponto de partida
, ia, pouco a pouco , diminuindo a tonalidade , sumindo-se ao longe, ate o ponto de nada mais se ouvir.
Nessa
hora, o tio repetia: “ Não se impaciente que o cabrito volta”. De fato: pouco
depois, começamos a ouvir , muito ao longe, o latido de um cão, logo após o de outro e mais outro, e num
crescendo continuo , à medida que se aproximava , o toque ia se clareando ,
alternando, avolumando-se e, já agora, ao passar ao sopé da colina onde nos
achávamos , já era uma avalanche ,
assemelhando-se a uma torrente escachoante !
Nesse
interim, não éramos nós apenas que nos
sentíamos emocionados : era a própria natureza , pois até o mato parecia
tremer, e os nossos animais , que mal contidos pelas rédeas , levantavam e
abaixavam as cabeças , num ímpeto de partir. Foi nesse momento supremo para o
caçador que o tio Pedro , inquieto, movendo-se nervosamente de um lado para o
outro, , com o fisionomia visivelmente alterada, estuante de entusiasmo e de
alegria, proferiu uma serie de gritos de estímulos e de aplauso à matilha , a
cujos gritos o Custódio , como em desafio , secundou na altura, com outros de
igual emotividade e beleza, que reboaram por todos os recantos do
Boqueirão!
Enquanto
a corrida, sempre estrepitosa e borbulhante rolava pelas encostas abaixo, lembremo-nos de que ao páreo concorriam 24
competidores ! – o velho dava ordens ao filho e ao Custódio , para que acompanhasse
a corrida, e, dirigindo-se a nós – Quincas, Zeca e eu- nos convidava a
acompanha-lo ao alto do outeiro , que dava vista para o vale do “Ribeirão das
Pombas” , donde poderíamos ver o veado e
os cães atravessarem a várzea que marginava aquele aquele. Partindo a trote
acelerado, , pouco depois chegávamos ao local indicado , donde, desde logo ,
começávamos a ouvir , repontando muito ao longe , a assuada matilha.
Advertia-
nos então o tio: “Tomem cuidado ! Olhem para baixo , que o cabrito espirra já
!!!...” E não tardou ! Aos pinchos , de pescoço esticado , orelhas voltadas
para a frente e a cauda revirada sobre as ancas , salta na clareira o “catingueiro” , que , ágil , avançando até
ao centro dessa, estaca , ao ver na frente reses que passeiam ,e, lesto
volta encimando os próprios rastros e, antes de atingir a orla da
catinga , donde saíra ziguezagueia rumando para o lado do ribeirão , passando
assim a finta aos seus perseguidores ...
Nós , nesse interim , fazendo menção de partir , fomos interceptados pelo
velho, que nos disse: “Não, esperemos um pouco, vamos apreciar o trabalho de
nossos famanazes “...
A
essa hora ,a acorrida já se abeirava da várzea , tocando os cães ainda com
vivacidade e fragor. Os primeiros a chegar , ao local em referencia , eram nossos, “ Açucena” e
“Desempenho” , cuja aparição deu ensejo a que eu e Zeca , num ato quase de
irreverencia , bradássemos: “ Conheceu tio Pedro ? Aqueles levaram sebos nas
canelas !” Ato continuo, o grosso da matilha atravessava , de um lado para o outro , o descampado
espalhando-se pelo serrado , decepcionados . pois haviam perdido a pista...
Movimentando-nos então , com intuito de auxiliar os cães , interveio novamente
o velho: “Não, esperemos mais um pouco, vamos ver qual dos nossos cães tem
melhor focinho “.
Na
cauda da matilha chegavam os veteranos – cinco ou seis – cães já madurões ,
porem firmes , os quais, entrando pela liça, de nariz no chão , catando rastros
aqui e ali , avançavam ate o meio dessa , mas, sentindo-lhes faltarem a pista , entreparam , e, lestos,
voluteiam , uns a direita e outros à esquerda , e, antes de fechar o cerco , já
o “Alegre” pegava novamente o rastro do veado.
Foi
quando o Quincas, num assomo de entusiasmo, gritou: Aí... “Alegre” !
lávai...lávai !!!
Nesse
instante, com as vestes esfarrapadas pelos arranha gatos e a todo galope ,
chega o Custodio, que, ouvindo os “ensaios” do “Alegre” e compreendendo os
gritos do Quincas, repicou a buzina e gritou também “Pratrás ! Pratrás” E era
de se ver a obediência e a presteza com que toda cachorrada atendia aos toques
de reunir do cachorreiro, cuja matilha, momentos depois, toda agrupada, Já trabalhava diligentemente
no encalço do cabrito. Mas , apesar da atividade dos cães , o desamoite não foi
fácil , porquanto, constatando se desde logo que o veado havia caído nágua e
rodado, tivemos de auxilia-los.
Nesse
trabalho fomos todos mobilizados: enquanto uns atravessavam e margeavam o
ribeirão á esquerda, outros margeavam á direita , sendo o meu trabalho, de
meninote que era então, aproveitado em puxar as montarias dos companheiros. Já
haviam palmilhados duas ou três voltas de ribeirão , na pesquisa de pista,
quando, com surpresa para todos, caçadores e cães , salta do meio da corrente,
de uma minúscula ilha , o veado, cujo imprevisto salto , além do susto ,
produziu entre todos grande confusão e hilaridade, soando por todo lado gritos
estrepitosos e salvas, que ecoavam pelos vales e colinas, procurando todos, em
correria atropelada , tomar seus animais , enquanto a corrida tomava direção do
espigão. Nessa ocasião, sentenciava o velho tio:- “ Esse não vai longe, berra
logo; veado quando cai nágua e deita a margem é sinal de que esta frouxo”. Realmente , num tropel feio e veloz
, a corrida, antes de galgar o cimo da colina, descrevendo pequena flexão ,
rumou para trás, porém, antes do cabrito atingir de novo o barranco do ribeirão
, foi alcançando e envolvido pr quase toda a matilha , que já o trazia á vista,
e , tal foi a disputa , que não se ficou sabendo qual teria sido o primeiro cão
a segura-lo. Nós todos, que nos achávamos nas imediações, acompanhando “de
vista”, entusiasmados e embevecidos , o final movimentado e rocambolesco da
peleja , nos acercamos precipitadamente
da presa, procurando cada qual , com salvas, gritos e toque de buzinas,
ser o primeiro a festejar a vitória, cujas expansões de alegria duraram algum
tempo , enchendo o ar e o ambiente de ruídos fragorosos e de fumaças. Pouco
depois ali mesmo, enquanto toda a matilha , deitada e resfolegante , guardava com
olhares ávidos o veado, nós comíamos a virado e comentávamos certos lances
engraçados da caçada.
Dentro
os comentários, e do qual nunca me esqueci ressalta este dito pelo Quincas: “
Quando ouço o tio Pedro gritar, tenho vontade de virar cão , entrar no mato e
sair tocando”
Depois
de um descanso relativo , como tínhamos de nos separar , foi alvitrado e
executado logo, ali, que se tirasse o couro do veado e distribuísse a carne aos cães.
Logo depois punhamo nos a caminho. A tardinha , no mesmo lugar onde
nos havíamo-nos encontrado pela manhã , despedimo-nos, beijando a mão do velho Pedro
Ribeiro, duas vêzes; como sobrinhos e como discípulos da arte venatória.
Ao
ascendera serra, passo a passo, , que é hoje a mesma: comprida, sinuosa e íngreme,
tendo a direita um horizonte vastíssimo , presenciamos um crepúsculo belíssimo,
pois o astro rei , ao se esconder por traz da cordilheira de Descalvado e São Carlos
deixava por toda amplidão uma poeira , tênue, de ouro a qual foi se diluindo
lentamente , enquanto a noite descerrava o seu véu...
Evocando
aqui, hoje, essa caçada cujos episódios trago bem nítidos na retina, apesar dos
cinquenta anos já decorridos , ouço, igualmente
reboar nos ouvidos os ecos longínquos dos gritos do velho e saudoso tio Pedro
!!!
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