segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Retirado da autobiografia de Vitor Ribeiro filho de Francisco Deocleciano Ribeiro e Ana Candida   


Caçada de veado no Retiro Boqueirão de propriedade da família Palma , sita em Santa Rita.

Preliminarmente , vale assinalar que o local em Referencia , naquele tempo – há cinco décadas recuadas – era o que ainda é hoje;um grande reservatório de veados “catingueiros”, e, como os poderes públicos cogitam de proteger a caça , instituindo “Parques de Reservas”  lembro a escolha daquele rincão como um dos que merecem ser estudados , visto preencher os requisitos exigidos , não lhe faltando , nem mesmo a vastidão , pois ali poderão ser reunidos  num só bloco , para mais de 10 mil alqueires de terras , tiradas dos municípios de Santa Rita e São Simão , cuja aquisição ficará em conta por se tratar de terrenos de 2ª e 3ª categoria e onde não existem benfeitorias a se indenizar. Deixando aqui o meu lembrete, prossigo a narrativa.

Exauria 1890 , quando achando-me em férias escolares , na “Fazenda Passa Quatro” , chega da cidade , o Quincas , meu irmão, dando-nos a alvissareira nova de haver tratado com o nosso tio Pedro Ribeiro da Fonseca  uma caçada para  o dia seguinte, no Boqueirão. O motivo de nosso alvoroço e da nossa alegria provinha do fato e ter o tio Pedro , quando moço gozado da fama de grande caçador de anta, galheiro, e , principalmente , de onça , no sertão daquela zona, que tinha sido o meião encaixilhado pelas serras de Santa Rita , São Simão e Jatai, de um lado , e, de outro , pelo “Mogi-Guassu” , entre a embocadura do “Ribeirão Bebedouro” e o do “Jatai”, e , ainda mais, era havido também como caçador de raça, puro esportista , o qual se inflamava de grande     intusiasmo ao observar o instinto agudo , a subtileza do faro e a diligencia do cão , no modo de procurar e perseguir a caça, e  sobretudo a harmonia do toque.

Pedro Ribeiro era de estatura mediana , mas desempenado , possuindo um tórax de  atleta ; era homem de pouca conversa , porem muito exato em tudo quanto dizia. Dotado igualmente , de calma admirável , era, no entanto , um destemido, pois, neste particular, contavam dele, os contemporâneos , atos de coragem pouco vulgar...

Agora , o que o velho ainda conservava , e em todo sua plenitude , constituindo para ele verdadeiro orgulho , era o modo de incitar os cães , era o grito. Possuindo uma voz de soprano ligeiro : voz fina, nítida , sem tremores e de grande potencialidade , os seus gritos:  “lá... vai “, “lá...vai”, “iii...”iam longe...,de quebrada em quebrada , de vale em vale, a tudo despertando a  tudo alegrando , com verdadeiras clarinadas!

Logo após à chegada do Quincas , o Custodio, nosso cachorreiro, foi prevenido para que se apresentasse , afim de sairmos bem cedo. Na manhã seguinte , mal os galos começavam a amiudar os seus cantares , pusemo-nos a caminho e já nos achávamos no alto da serra do Maneco Palma , quando o dia dava os primeiros sinais de vida, espreguiçando-se muito ao longe...Ao iniciar a descida . demos uns toque de buzina , sinal convencionado , ao qual o velho prontamente responde com  toque mais altos , porem harmoniosos , tirados da sua buzina , que era de chifres inteiriços , ao passo que as nossas eram metálicas.

Ao chegarmos ao sopé da serra , onde nossa estrada cruzava com a que ia da fazenda do tio ao Boqueirão , lá estava o velho , acompanhado de um filho , de mais dois companheiros e da matilha. Após os cumprimentos e a troca de gracejos, com os quais o tio procurava saber se havíamos passado sebo nas canelas dos nossos cães, prosseguimos a viagem ate que , e ainda em boa hora matinal , chegávamos ao local escolhido para a solta dos cães , que eram ao todo 24: 14 nossos e 10 do velho , ficando desde logo estabelecido que só a este cabia dirigir toda a caçada.

Em consonância com este critério , indicou-nos o mestre o alto de uma colina , onde deveríamos nos postar e não sair antes que ele lá chegasse. Do local em apreço – explicou-nos ele – vocês poderão acompanhar todo o desenvolvimento da caçada e ouvir todos os toques , tomem eles as direções que tomarem. Ao mesmo tempo que nos dirigíamos ao ponto indicado , os dois eméritos caçadores, Pedro Ribeiro e Custódio , desatrelavam os cães num rocio à margem do riacho. A matilha , que estava composta quase que só de veteranos , penetrou pela mata silenciosamente. Porem, pouco tempo depois , a cadela “Gazeta” , pertencente ao Velho , dava sinais de ter encontrado uma trilha , a cujos latidos  o dono correspondeu logo, com gritos apropriados. Mas, não demorou muito para que o nosso baliza , o “Cupido” , também ensaiasse com certo vigor , denotando que o rastro que havia encontrado era fresco. Dai em diante , instintivamente , a matilha foi-se separando em dois núcleos distintos: um guiado pelo “Cupido” e outro pela “Gazeta” e pelas direções que tomavam , não restava duvidas de que se tratava de dois veados. E, a  estimular a um e a outro ali estavam os dois campeões do grito; Pedro Ribeiro e Custódio , com sua voz de tenor , volumosa e forte.

Do nosso posto de observação, assistíamos, então , a uma cena , para nos caçadores, simplesmente empolgante; presenciávamos um verdadeiro torneio , não de oratória propriamente, mas de gritos. Aquela hora , já toda cachorrada trabalhava alegre e afoitamente , a cujos ”ensaios”, ora o velho , ora o Custódio , correspondiam à altura , com vigor e entusiasmo , numa torcida frenética para que ao seu favorito coubesse a palma da vitória, no levante da caça.

E, pegando fogo , num crescendo de emulação e ruidosa alegria , iam as coisas , quando a “Certeza” , passando a finta no “Cupido” , surpreende o veado e, desmandibulando-se toda , grita, geme fragorosamente , produzindo grande assuada! A esse tempo , ouve-se o estampido da salva e as clarinadas  e repetidos ecos dos gritos do velho tio Pedro , em cujas manifestações de alegria ele punha toda a emotividade de sua alma de caçador , e, sem interromper a corrente de ecos da salva do Custódio , e os reboos de seu possante gritos tintinabulam também pelo Boqueirão abaixo!!

Nesse momento , por toda parte , ouve-se ganidos de cães, que, em carreiras atropeladas , procuram juntar-se à  “Certeza” , que já em toque ritmado , ganha o espigão.

A corrida, à  qual não faltou um só cão , desenvolveu-se animada e rumorosa pelo dorso afora da colina.

De onde estávamos , vimos, então, o Custódio tomar de salto o “Picaço” e,  de trelas atadas à garupa , chapéu caído na nuca , preso pela barbela , dar de rédeas, esporeando ao mesmo tempo o matungo, que saiu rabejando ,e a todo galope, por desvio , afim de não perder o contacto com a cachorrada. Nós, de cabelos arrepiados, com os assentos erguidos das selas e os corpos apoiados somente nas pontas dos pés , nos estribos, e, ainda sob a comoção produzida pela “Batida”  da “Certeza” e pelos gritos de “Levante” , expelidos pelos dois titans , mestres em cinegética , ouvimos maravilhados a corrida  que já ia longe , quando nos surge  pela frente o velho tio Pedro, trazendo no semblante o sorriso radioso da vitória. “ Pois- gritava ele- como foi, Quincas , que o “Cupido” , e o seu baliza , deixou a cadela lhe passar à frente? “.

Encerrando á pressa o dialogo , endireitamo-nos nas selas, fazendo menção de partir, a cujo gesto o velho obtemperou:-    “ Não , fiquemos por aqui mesmo; esse veado volta, já lhe conheço a carreira. Ouçamos o toque e veremos”.

A corrida, que a começo era volumosa e hilariante,  à medida que se afastava do ponto de partida , ia, pouco a pouco , diminuindo a tonalidade , sumindo-se ao longe, ate  o ponto de nada mais se ouvir.

Nessa hora, o tio repetia: “ Não se impaciente que o cabrito volta”. De fato: pouco depois, começamos a ouvir , muito ao longe, o latido de um cão,  logo após o de outro e mais outro, e num crescendo continuo , à medida que se aproximava , o toque ia se clareando , alternando, avolumando-se e, já agora, ao passar ao sopé da colina onde nos achávamos  , já era uma avalanche , assemelhando-se a uma torrente escachoante !

Nesse interim, não éramos nós  apenas que nos sentíamos emocionados : era a própria natureza , pois até o mato parecia tremer, e os nossos animais , que mal contidos pelas rédeas , levantavam e abaixavam as cabeças , num ímpeto de partir. Foi nesse momento supremo para o caçador que o tio Pedro , inquieto, movendo-se nervosamente de um lado para o outro, , com o fisionomia visivelmente alterada, estuante de entusiasmo e de alegria, proferiu uma serie de gritos de estímulos e de aplauso à matilha , a cujos gritos o Custódio , como em desafio , secundou na altura, com outros de igual emotividade e beleza, que reboaram por todos os recantos do Boqueirão!   

Enquanto a corrida, sempre estrepitosa e borbulhante rolava pelas encostas abaixo,  lembremo-nos de que ao páreo concorriam 24 competidores ! – o velho dava ordens ao filho e ao Custódio , para que acompanhasse a corrida, e, dirigindo-se a nós – Quincas, Zeca e eu- nos convidava a acompanha-lo ao alto do outeiro , que dava vista para o vale do “Ribeirão das Pombas” , donde  poderíamos ver o veado e os cães atravessarem a várzea que marginava aquele aquele. Partindo a trote acelerado, , pouco depois chegávamos ao local indicado , donde, desde logo , começávamos a ouvir , repontando muito ao longe , a assuada matilha.

Advertia- nos então o tio: “Tomem cuidado ! Olhem para baixo , que o cabrito espirra já !!!...” E não tardou ! Aos pinchos , de pescoço esticado , orelhas voltadas para a frente e a cauda revirada sobre as ancas , salta na clareira  o “catingueiro” , que , ágil , avançando até ao centro dessa, estaca , ao ver na frente reses que passeiam ,e,  lesto  volta encimando os próprios rastros e, antes de atingir a orla da catinga , donde saíra ziguezagueia rumando para o lado do ribeirão , passando assim a finta  aos seus perseguidores ... Nós , nesse interim , fazendo menção de partir , fomos interceptados pelo velho, que nos disse: “Não, esperemos um pouco, vamos apreciar o trabalho de nossos famanazes “...

A essa hora ,a acorrida já se abeirava da várzea , tocando os cães ainda com vivacidade e fragor. Os primeiros a chegar , ao local  em referencia , eram nossos, “ Açucena” e “Desempenho” , cuja aparição deu ensejo a que eu e Zeca , num ato quase de irreverencia , bradássemos: “ Conheceu tio Pedro ? Aqueles levaram sebos nas canelas !” Ato continuo, o grosso da matilha atravessava ,  de um lado para o outro , o descampado espalhando-se pelo serrado , decepcionados . pois haviam perdido a pista... Movimentando-nos então , com intuito de auxiliar os cães , interveio novamente o velho: “Não, esperemos mais um pouco, vamos ver qual dos nossos cães tem melhor focinho “.

Na cauda da matilha chegavam os veteranos – cinco ou seis – cães já madurões , porem firmes , os quais, entrando pela liça, de nariz no chão , catando rastros aqui e ali , avançavam ate o meio dessa , mas, sentindo-lhes  faltarem a pista , entreparam , e, lestos, voluteiam , uns a direita e outros à esquerda , e, antes de fechar o cerco , já o “Alegre” pegava novamente o rastro do veado.

Foi quando o Quincas, num assomo de entusiasmo, gritou: Aí... “Alegre” ! lávai...lávai !!!

Nesse instante, com as vestes esfarrapadas pelos arranha gatos e a todo galope , chega o Custodio, que, ouvindo os “ensaios” do “Alegre” e compreendendo os gritos do Quincas, repicou a buzina e gritou também “Pratrás ! Pratrás” E era de se ver a obediência e a presteza com que toda cachorrada atendia aos toques de reunir do cachorreiro, cuja matilha, momentos depois,  toda agrupada, Já trabalhava diligentemente no encalço do cabrito. Mas , apesar da atividade dos cães , o desamoite não foi fácil , porquanto, constatando se desde logo que o veado havia caído nágua e rodado, tivemos de auxilia-los.

Nesse trabalho fomos todos mobilizados: enquanto uns atravessavam e margeavam o ribeirão á esquerda, outros margeavam á direita , sendo o meu trabalho, de meninote que era então, aproveitado em puxar as montarias dos companheiros. Já haviam palmilhados duas ou três voltas de ribeirão , na pesquisa de pista, quando, com surpresa para todos, caçadores e cães , salta do meio da corrente, de uma minúscula ilha , o veado, cujo imprevisto salto , além do susto , produziu entre todos grande confusão e hilaridade, soando por todo lado gritos estrepitosos e salvas, que ecoavam pelos vales e colinas, procurando todos, em correria atropelada , tomar seus animais , enquanto a corrida tomava direção do espigão. Nessa ocasião, sentenciava o velho tio:- “ Esse não vai longe, berra logo; veado quando cai nágua e deita a margem é sinal de que esta  frouxo”. Realmente , num tropel feio e veloz , a corrida, antes de galgar o cimo da colina, descrevendo pequena flexão , rumou para trás, porém, antes do cabrito atingir de novo o barranco do ribeirão , foi alcançando e envolvido pr quase toda a matilha , que já o trazia á vista, e , tal foi a disputa , que não se ficou sabendo qual teria sido o primeiro cão a segura-lo. Nós todos, que nos achávamos nas imediações, acompanhando “de vista”, entusiasmados e embevecidos , o final movimentado e rocambolesco da peleja , nos acercamos precipitadamente  da presa, procurando cada qual , com salvas, gritos e toque de buzinas, ser o primeiro a festejar a vitória, cujas expansões de alegria duraram algum tempo , enchendo o ar e o ambiente de ruídos fragorosos e de fumaças. Pouco depois ali mesmo, enquanto toda a matilha , deitada e resfolegante , guardava com olhares ávidos o veado, nós comíamos a virado e comentávamos certos lances engraçados da caçada.

Dentro os comentários, e do qual nunca me esqueci ressalta este dito pelo Quincas: “ Quando ouço o tio Pedro gritar, tenho vontade de virar cão , entrar no mato e sair tocando”

Depois de um descanso relativo , como tínhamos de nos separar , foi alvitrado e executado logo, ali, que se tirasse o couro do veado e distribuísse a carne  aos cães.

 Logo depois punhamo nos  a caminho. A tardinha , no mesmo lugar onde nos havíamo-nos encontrado pela manhã , despedimo-nos, beijando a mão do velho Pedro Ribeiro, duas vêzes; como sobrinhos e como discípulos da arte venatória.

Ao ascendera serra, passo a passo, , que é hoje a mesma: comprida, sinuosa e íngreme, tendo a direita um horizonte vastíssimo , presenciamos um crepúsculo belíssimo, pois o astro rei , ao se esconder por traz da cordilheira de Descalvado e São Carlos deixava por toda amplidão uma poeira , tênue, de ouro a qual foi se diluindo lentamente , enquanto a noite descerrava o seu véu...

Evocando aqui, hoje, essa caçada cujos episódios trago bem nítidos na retina, apesar dos cinquenta anos já decorridos , ouço,  igualmente reboar nos ouvidos os ecos longínquos dos gritos do velho e saudoso tio Pedro !!!                                                           

 

 

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