segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

 Retirado auto biografia d Vitor Ribeiro, filho de Francisco Deocleciano e Ana Candida  

                                         O cachorro “Cupido”  

Este animal tem sua historia.

Trata-se de um cão de estimação que pertenceu ao apaixonado e exímio caçador de veados Quincas Ribeiro.

Os pais do referido animal haviam sido doados a este pelo seu velho tio Pedro Ribeiro  da Fonseca , cuja raça de caninos vinha sendo conservada com carinho e, de longa data, pelos seus ancestrais , constituindo, assim , já um bem de família.

“Cupido” era pois, um animal de raça, de cuidadoso “pedigree”! Nascera na fazenda “Passa Quatro”, sita em Santa Rita ; com idade de um ano fora levado ao mato pela primeira vez , demonstrando já na segunda caçada em que tomara parte predicados excepcionais de veadeiro de fina estirpe. Na terceira caçada , causando surpresa a todos os caçadores presentes, levantou e desmoitou um “catingueiro” duas vezes seguidas , segurando-o logo depois.

Com essa façanha , iniciou ele sua ascensão vitoriosa ao mundo da cinegética. Daí em diante tornou-se afigura principal, não só da matilha do Quincas , como também das dos demais caçadores do município. Pouco mais tarde , a sua fama transpôs as raias de Santa Rita , estendendo-se aos municípios de Tambaú , Santa Rosa e São Simão, onde seu dono, mantendo relações com todos os caçadores , empreendia frequente e longas caçadas.

Como veadeiro nacional, tinha, bem acentuado, todos os característicos da raça: era alto, comprido e esbelto, de cabeça e focinho alongados , conservando as orelhas sempre e posição vigilante; seu pelo era preto , com tonalidades amarela pela barriga e pelas patas; era dotado de latido grosso , volumoso e retumbante , fazendo-se ouvir muito ao longe. Posto que se expressasse com sobriedade , quando em procura da caça, era no entanto exuberante ao surpreende-las e nos, toques, aí então latia abundantemente e com singular alegria. Seus levantes, principalmente, eram vibrantes , de sacudir e emocionar, até mesmo, os bisonhos na arte  venatória! Quanto ao instinto  e ao  faro, possuía-os dos mais atilados , tendo a intuição perfeita do verdadeiro caçador. Do mesmo modo, cão algum o suplantou na resistência física  e sobretudo na velocidade.

Caçava dias a fio sem demonstrar cansaço , sendo impar na carreira.

Durante sua mocidade- dos 2 aos 8 anos- muito poucas  vezes encontrou parceiro que tomasse a dianteira e, nos dias frescos , poucos veados dos que perseguia , tiveram ensejo de se amoitar mais de duas vezes; era frequente segura-los no segundo desamoite.

Sendo um animal dócil para as pessoas , era no entanto um destemido para com os outros cães  , enfrentando-os a todos com denodada bravura, mormente quando se metiam a querer requestar as suas favoritas , caso em que era violento e severo em pondo em “nocaute”  o atrevido logo nos primeiros “rounds”...

Agora, o predicado que mais o distinguiu como cão veadeiro , constituindo um dos predicados mais apreciados na raça, e a ufania de seu dono , era o desprezo que votava por todas as demais caças. Só corria veado, jamais perseguia uma cacinha. Neste  particular , tal era a confiança que seu dono nele depositava , que, certa vez, lhe pôs a vida a prêmio.

O fato deu-se nas margens do rio Mogi-Guassú, , entre as fazendas Còrrego Rico e Paulicéia.

Achavam-se ali abarracados , em excursão venatória os caçadores e velhos amigos Quincas Ribeiro , Adolfo Melchert, e Capitão Marciliano da Costa, com suas matilhas , quando, por uma manhã, ao iniciar a caçada , a cachorrada, logo ao penetrar pela mata , esbarrou com uma grande vara de queixadas. Do choque dessa com as matilhas , como era de esperar , resultou luta violenta , com agressões reciprocas , confundindo-se , no meio de grande assuada, ganido doloridos de cães com rilhar e dentes dos bichos , partindo em seguida , com o estoiro da porcada , corrida de cães por todos os lados .

Impressionados com o imprevisto e receiando-se  pela sorte dos cães , trataram logo, todos os caçadores , com toque de buzinas e salvas , de afastar os cães do local onde se dera o desagradável encontro, cujo trabalho não foi dos mais fáceis.

Todavia , depois de umas duas horas , já em ponto diferente, o grosso das matilhas trabalhava em trilhas de veado , quando chega o capitão Marciliano , o último dos companheiros  que havia ficado para trás , no trabalho de afastar os cães do local perigoso , o qual, dirigindo-se ao Quicas , lhe diz: “Então, Quincas , como foi que seu bamba , o “Cupido” , desta vez  lhe deixou mal”?

“Como assim? “ retruca-lhe o amigo – “É que, ainda há pouco , o vi todo ensanguentado e golpeado pelos porcos”. A essa afirmativa, o Quincas objeta , prontamente , e com firmeza; “Presumo que meu amigo se tenha enganado , mas se o que acaba de dizer se confirmar , apesar da estima que tenho por este animal , dar-lhe -ei um tiro na cabeça.

O Quicas assim se expressava visivelmente desconcertado , portanto, ainda na véspera , havia feito aos companheiros referencias gabosas às qualidades do seu cão favorito. Ao encerrar esse dialogo , a atenção  do Quincas era no entanto , despertada pelo toque de cães que repontavam muito ao longe.

Apurando melhor o ouvido, volta-se para seu interlocutor e, com ar de ironia , lhe diz: “Lá vem o ferido! ouçamos  um pouco!”. Efetivamente , momentos depois , já se ouvia claramente o toque ,que, gradativamente , se avolumava e se aproximava do rio , onde os caçadores se achavam em canoas , vindo na vanguarda da corrida , e bem destacado , o “Cupido”.

Foi quando o Quincas , dirigindo-se aos companheiros , lhes recomendava que tomassem posição  , porquanto o cabrito estava a espirrar e , com efeito, logo após caia nagua , a  todo peso, o Cupido engarupado num bonito “mateiro“.

Abatido o veado , o Quincas , radiante de entusiasmo  e alegria , acerca-se, e abraça demoradamente o cão seu querido e valente companheiro de venatura, e , voltando se para o velho capitão; aponta -lhe o animal  e pergunta-lhe “Aonde estão os ferimentos capitão?”.

Horas depois , já no acampamento  , passando em revista os cães que haviam sido feridos pelas queixadas , foi encontrado, entre eles, um pertencente ao velho Marciliano, o qual se parecia com o cão de seu amigo , provindo dai o equivoco e consequente desapontamento do velho caçador.

 

“Cupido”, na sua fecunda existência , deixou um rastro luminoso e difícil de ser esquecido pelo seu dono. A resistência às longas jornadas , a tenacidade na perseguição da caça, a lealdade e dedicação ao seu dono , foram os seus traços marcantes. Mas, como todos os seres , sofreu também as consequências inexoráveis do tempo. Ficou velho.

Do esforço e do trabalho despendidos, chegou-lhe mais cedo a decrepitude.

Aos 8 anos, em escala decrescente , nas corridas , foi passando para a retaguarda da matilha , mas, mesmo ali, tinha sua função a desempenhar. E quantas , quantas vezes! Sendo o ultimo a chegar , nas perdidas, era no entanto o primeiro a descobrir de novo a pista...

Com o focinho no chão , catando rastos aqui acola . atravessava sem vacilar as clareiras e as várzeas , indicando aos outros cães a verdadeira vereda. Aos 9 anos , teve seu crepúsculo , sua integral decadência. Finalmente , faltando-lhe por completo as forças , seu dono foi constrangido a impedi-lo de ir a caça , imperativo com o qual custou a se conformar.

No começo, ao ver a matilha partir , mostrava-se  irrequieto , pesaroso , pondo-se a ganir tristemente...

Mas, com o correr do tempo , teve que se submeter à lei implacável da velhice e, resignado , recolheu-se ao seu canto , onde, entretanto , recebia assistência e o carinho de todos da casa , de cuja família já era considerado parte integrante e donde só saia raras vezes estimulado e acariciado pelo seu dono, afim de ver os veados batidos nas suas caçadas, e que eram trazidos para casa.

Então, arrastando-se penosamente, bamboleante e quase exangue: de olhos empanados pela senilidade , num misto de tristeza e de alegria , era de se ver , nessa hora  , com que emoção ele se aproximava da caça e, depois de mira-la longamente , de cheira-la , da cauda ao focinho , enternecido , pesaroso, meneando a cabeça e erguendo -a penosamente , expelia ganidos rouquenhos , agoniados e estertorantes , que saiam do fundo das entranhas , a todos comovendo e a todos entristecendo profundamente!

Eram, sem duvida alguma , as reminiscências do passado que que se foi, eram as saudades acordadas da sua mocidade ; era finalmente o pressentimento do fim, da ultima pagina da vida! Eram cenas essas confrangedoras , que cortavam o coração , e das quais guardo , até hoje recordações indeléveis...

Um dia, após um daqueles comoventes espetáculos , deixou de existir. A casa , impelida por um sentimento espontâneo , entrou em recolhimento , pois via-se a tristeza e o pesar estampados em todos os semblantes! A impressão era de que se havia perdido um grande e leal amigo !

Ao lhe darem sepultura , condigna , seu dono recomendou que lhe reservasse do mesmo , uma lembrança , sendo então aviltado que se lhe deixasse a cabeça, na qual, depois de despojado do couro e dos músculos , e reduzida somente a parte óssea lhe gravaram esta inscrição: “ Cupido , campeão da arte cinegética!! Honra e gloria da raça veadeira”.

Essa caveira, como preciosa relíquia , jazeu por longos anos dependurada nos chifres  do ultimo “mateiro” que ele havia apresado , cujo troféu servia de cabide no portal da entrada do vetusto casarão da “Fazenda Passa Quatro”, donde fora retirado , anos depois , pelo próprio Quincas , ao transferir sua residência para Santa Rosa e, segundo informações seguras , a aludida relíquia acha-se ainda em poder de pessoa da família.

Resumindo: “ Cupido “ desapareceu cercado por uma auréola da valentia e de admiração. Sua vida foi rica em façanhas e episódios interessantes.

E aqui finda a historia breve, singela e muito simples, mesmo, porém autentica e edificante , do mais leal e reconhecido amigo do homem e que tanto prazer lhe proporciona!!

                                                                      Santos, 20 -10 – 1941

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