Retirado auto biografia d Vitor Ribeiro, filho de Francisco Deocleciano e Ana Candida
O cachorro
“Cupido”
Este animal tem sua historia.
Trata-se de um cão de estimação que pertenceu ao apaixonado e
exímio caçador de veados Quincas Ribeiro.
Os pais do referido animal haviam
sido doados a este pelo seu velho tio Pedro Ribeiro da Fonseca , cuja raça de caninos vinha sendo
conservada com carinho e, de longa data, pelos seus ancestrais , constituindo,
assim , já um bem de família.
“Cupido” era pois, um animal de raça, de cuidadoso
“pedigree”! Nascera na fazenda “Passa Quatro”, sita em Santa Rita ; com idade
de um ano fora levado ao mato pela primeira vez , demonstrando já na segunda
caçada em que tomara parte predicados excepcionais de veadeiro de fina estirpe.
Na terceira caçada , causando surpresa a todos os caçadores presentes, levantou
e desmoitou um “catingueiro” duas vezes seguidas , segurando-o logo depois.
Com essa façanha , iniciou ele sua ascensão vitoriosa ao
mundo da cinegética. Daí em diante tornou-se afigura principal, não só da
matilha do Quincas , como também das dos demais caçadores do município. Pouco
mais tarde , a sua fama transpôs as raias de Santa Rita , estendendo-se aos
municípios de Tambaú , Santa Rosa e São Simão, onde seu dono, mantendo relações
com todos os caçadores , empreendia frequente e longas caçadas.
Como veadeiro nacional, tinha, bem acentuado, todos os
característicos da raça: era alto, comprido e esbelto, de cabeça e focinho
alongados , conservando as orelhas sempre e posição vigilante; seu pelo era
preto , com tonalidades amarela pela barriga e pelas patas; era dotado de
latido grosso , volumoso e retumbante , fazendo-se ouvir muito ao longe. Posto
que se expressasse com sobriedade , quando em procura da caça, era no entanto
exuberante ao surpreende-las e nos, toques, aí então latia abundantemente e com
singular alegria. Seus levantes, principalmente, eram vibrantes , de sacudir e
emocionar, até mesmo, os bisonhos na arte venatória! Quanto ao instinto e ao faro,
possuía-os dos mais atilados , tendo a intuição perfeita do verdadeiro caçador.
Do mesmo modo, cão algum o suplantou na resistência física e sobretudo na velocidade.
Caçava dias a fio sem demonstrar cansaço , sendo impar na
carreira.
Durante sua mocidade- dos 2 aos 8 anos- muito poucas vezes encontrou parceiro que tomasse a
dianteira e, nos dias frescos , poucos veados dos que perseguia , tiveram
ensejo de se amoitar mais de duas vezes; era frequente segura-los no segundo
desamoite.
Sendo um animal dócil para as pessoas , era no entanto um
destemido para com os outros cães ,
enfrentando-os a todos com denodada bravura, mormente quando se metiam a querer
requestar as suas favoritas , caso em que era violento e severo em pondo em
“nocaute” o atrevido logo nos primeiros
“rounds”...
Agora, o
predicado que mais o distinguiu como cão veadeiro , constituindo um dos
predicados mais apreciados na raça, e a ufania de seu dono , era o desprezo que
votava por todas as demais caças. Só corria veado, jamais perseguia uma
cacinha. Neste particular , tal era a
confiança que seu dono nele depositava , que, certa vez, lhe pôs a vida a
prêmio.
O fato
deu-se nas margens do rio Mogi-Guassú, , entre as fazendas Còrrego Rico e
Paulicéia.
Achavam-se
ali abarracados , em excursão venatória os caçadores e velhos amigos Quincas
Ribeiro , Adolfo Melchert, e Capitão Marciliano da Costa, com suas matilhas ,
quando, por uma manhã, ao iniciar a caçada , a cachorrada, logo ao penetrar
pela mata , esbarrou com uma grande vara de queixadas. Do choque dessa com as
matilhas , como era de esperar , resultou luta violenta , com agressões
reciprocas , confundindo-se , no meio de grande assuada, ganido doloridos de
cães com rilhar e dentes dos bichos , partindo em seguida , com o estoiro da
porcada , corrida de cães por todos os lados .
Impressionados
com o imprevisto e receiando-se pela
sorte dos cães , trataram logo, todos os caçadores , com toque de buzinas e
salvas , de afastar os cães do local onde se dera o desagradável encontro, cujo
trabalho não foi dos mais fáceis.
Todavia ,
depois de umas duas horas , já em ponto diferente, o grosso das matilhas
trabalhava em trilhas de veado , quando chega o capitão Marciliano , o último
dos companheiros que havia ficado para
trás , no trabalho de afastar os cães do local perigoso , o qual, dirigindo-se
ao Quicas , lhe diz: “Então, Quincas , como foi que seu bamba , o “Cupido” ,
desta vez lhe deixou mal”?
“Como assim?
“ retruca-lhe o amigo – “É que, ainda há pouco , o vi todo ensanguentado e
golpeado pelos porcos”. A essa afirmativa, o Quincas objeta , prontamente , e
com firmeza; “Presumo que meu amigo se tenha enganado , mas se o que acaba de
dizer se confirmar , apesar da estima que tenho por este animal , dar-lhe -ei
um tiro na cabeça.
O Quicas
assim se expressava visivelmente desconcertado , portanto, ainda na véspera ,
havia feito aos companheiros referencias gabosas às qualidades do seu cão
favorito. Ao encerrar esse dialogo , a atenção
do Quincas era no entanto , despertada pelo toque de cães que repontavam
muito ao longe.
Apurando
melhor o ouvido, volta-se para seu interlocutor e, com ar de ironia , lhe diz:
“Lá vem o ferido! ouçamos um pouco!”.
Efetivamente , momentos depois , já se ouvia claramente o toque ,que,
gradativamente , se avolumava e se aproximava do rio , onde os caçadores se achavam
em canoas , vindo na vanguarda da corrida , e bem destacado , o “Cupido”.
Foi
quando o Quincas , dirigindo-se aos companheiros , lhes recomendava que
tomassem posição , porquanto o cabrito
estava a espirrar e , com efeito, logo após caia nagua , a todo peso, o Cupido engarupado num bonito
“mateiro“.
Abatido
o veado , o Quincas , radiante de entusiasmo
e alegria , acerca-se, e abraça demoradamente o cão seu querido e
valente companheiro de venatura, e , voltando se para o velho capitão; aponta
-lhe o animal e pergunta-lhe “Aonde
estão os ferimentos capitão?”.
Horas
depois , já no acampamento , passando em
revista os cães que haviam sido feridos pelas queixadas , foi encontrado, entre
eles, um pertencente ao velho Marciliano, o qual se parecia com o cão de seu
amigo , provindo dai o equivoco e consequente desapontamento do velho caçador.
“Cupido”,
na sua fecunda existência , deixou um rastro luminoso e difícil de ser
esquecido pelo seu dono. A resistência às longas jornadas , a tenacidade na
perseguição da caça, a lealdade e dedicação ao seu dono , foram os seus traços
marcantes. Mas, como todos os seres , sofreu também as consequências
inexoráveis do tempo. Ficou velho.
Do
esforço e do trabalho despendidos, chegou-lhe mais cedo a decrepitude.
Aos
8 anos, em escala decrescente , nas corridas , foi passando para a retaguarda
da matilha , mas, mesmo ali, tinha sua função a desempenhar. E quantas ,
quantas vezes! Sendo o ultimo a chegar , nas perdidas, era no entanto o
primeiro a descobrir de novo a pista...
Com
o focinho no chão , catando rastos aqui acola . atravessava sem vacilar as
clareiras e as várzeas , indicando aos outros cães a verdadeira vereda. Aos 9
anos , teve seu crepúsculo , sua integral decadência. Finalmente , faltando-lhe
por completo as forças , seu dono foi constrangido a impedi-lo de ir a caça ,
imperativo com o qual custou a se conformar.
No
começo, ao ver a matilha partir , mostrava-se
irrequieto , pesaroso , pondo-se a ganir tristemente...
Mas,
com o correr do tempo , teve que se submeter à lei implacável da velhice e,
resignado , recolheu-se ao seu canto , onde, entretanto , recebia assistência e
o carinho de todos da casa , de cuja família já era considerado parte
integrante e donde só saia raras vezes estimulado e acariciado pelo seu dono,
afim de ver os veados batidos nas suas caçadas, e que eram trazidos para casa.
Então,
arrastando-se penosamente, bamboleante e quase exangue: de olhos empanados pela
senilidade , num misto de tristeza e de alegria , era de se ver , nessa
hora , com que emoção ele se aproximava
da caça e, depois de mira-la longamente , de cheira-la , da cauda ao focinho ,
enternecido , pesaroso, meneando a cabeça e erguendo -a penosamente , expelia
ganidos rouquenhos , agoniados e estertorantes , que saiam do fundo das
entranhas , a todos comovendo e a todos entristecendo profundamente!
Eram,
sem duvida alguma , as reminiscências do passado que que se foi, eram as
saudades acordadas da sua mocidade ; era finalmente o pressentimento do fim, da
ultima pagina da vida! Eram cenas essas confrangedoras , que cortavam o coração
, e das quais guardo , até hoje recordações indeléveis...
Um
dia, após um daqueles comoventes espetáculos , deixou de existir. A casa ,
impelida por um sentimento espontâneo , entrou em recolhimento , pois via-se a
tristeza e o pesar estampados em todos os semblantes! A impressão era de que se
havia perdido um grande e leal amigo !
Ao
lhe darem sepultura , condigna , seu dono recomendou que lhe reservasse do
mesmo , uma lembrança , sendo então aviltado que se lhe deixasse a cabeça, na
qual, depois de despojado do couro e dos músculos , e reduzida somente a parte
óssea lhe gravaram esta inscrição: “ Cupido , campeão da arte cinegética!!
Honra e gloria da raça veadeira”.
Essa
caveira, como preciosa relíquia , jazeu por longos anos dependurada nos
chifres do ultimo “mateiro” que ele
havia apresado , cujo troféu servia de cabide no portal da entrada do vetusto
casarão da “Fazenda Passa Quatro”, donde fora retirado , anos depois , pelo
próprio Quincas , ao transferir sua residência para Santa Rosa e, segundo
informações seguras , a aludida relíquia acha-se ainda em poder de pessoa da
família.
Resumindo:
“ Cupido “ desapareceu cercado por uma auréola da valentia e de admiração. Sua
vida foi rica em façanhas e episódios interessantes.
E
aqui finda a historia breve, singela e muito simples, mesmo, porém autentica e
edificante , do mais leal e reconhecido amigo do homem e que tanto prazer lhe
proporciona!!
Santos, 20 -10 –
1941
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