Retirado da auto biografia de Vitor Ribeiro, filho de Francisco Ribeiro e Ana Candida
Caçada de
Anta no rio das Cinzas , foz do Laranjeirinha norte do Paraná
Em que
circunstância aprendia a cozinhar
Como a
reminiscência é a ultima faceirice do velho , permito-me iniciar esta narrativa
venatória , relembrando o principal motivo que me ensejou a incursão , em pleno
coração de nossas florestas virgens , em rincão ainda habitado por indígenas ,
que era então o local a que acima me refiro , pois é preciso não esquecer que
isso se passou em 1906.
Em principio
de maio desse ano , fugindo ao ambiente pesado e desfavorável que se formou
para mim em Santa Rita , motivado pela dissolução de um certo compromisso ,
parti para Fartura , sem outro objetivo
senão o de dar tempo a que o ocorrido caísse no esquecimento.
Procurando
por isso em emoções mais fortes espairecer , não digo as máguas , mas a
displicência que envolvia meu espirito ,
foi que, com meu primo Oliveiros Ribeiro
, que então ali residia , planejamos e empreendemos a caçada a que, com muita
saudade, me reporto.
Faltando a
mim e a ele a pratica e certos elementos
indispensáveis para a composição da caravana , como fossem ; cães de caça,
barracas, animais de carga, utensílios de cozinha, cozinheiro, etc ; convidamos
para nossos companheiros a Frederico Butter e José Neto , os quais se encarregaram desta
parte , ficando eu e Oliveiros responsáveis pelos gastos em dinheiro , com
viveres e salario do tropeiro , cozinheiro e
canoeiros.
Antes,
porém, de relatar a caçada a que aludimos vamos tentar descrever o que o que seja uma caçada de anta, em rio e
em pleno sertão. Pois, não se deve confundir essas caçadas com a de veado, em
terreno cultivado , onde o caçador
acompanhando a cavalo a matilha , nada perde da caçada, desde os primeiros
ensaios dos cães, à corridas e à pega da caça. A caçada de anta em rio e em
sertão é muito diferente. Não é demais acentuar que, quando se fala em caçada
de anta, deve se compreender que se trata de caçada completa, porquanto, onde
existe a anta, quase sempre abundam todas as demais caças , notadamente o
veado, e, sendo em rio, entende-se também a pescaria e a passarinhada. Outro
sim, não devemos esquecer que, em geral , todo cachorro de raça veadeiro , de
primeira vista , corre também anta, por
isso para essa caçada não se exigem cães muito amestrados. Além de que,
tratando-se de um animal grande e que corre de ordinário , em carreiros batidos
, dificilmente o cão a perde. E só os caçadores experientes sabem que, a essas
incursões pelo sertão , não se deve levar os melhores cães , por ser frequente
o desaparecimento desses ; uns por extravios , morrendo de inanição , e outros vitimados
por onça, pois esta, quando aprende a pegar cães, fazem estrago numa matilha.
Como é
sabido, de toda a nossa fauna , é anta o animal mais perseguido , mormente
pelos nossos sertanejos que muito lhe apreciam o couro e a carne e por ser
relativamente fácil a sua caçada. Dependendo do êxito de todo o empreendimento
da boa ordem , essas caçadas costumam obedecer a este programa: o tempo que
medeia entre o raiar do dia a as 10 e 11 horas
é empregado na caçada de anta e
veado. A essa hora, os caçadores procuram a abarracamento para o almoço , após o
que cuidam de tirar e esticar os couros e retalhar e salgar as carnes dos
animais abatidos , estendendo-os em varais para secar. Os cães fartam-se
geralmente com as vísceras e as carnes aderente aos ossos. Quando o período da
manhã é infrutífero para os caçadores, faz-se uma segunda tentativa , depois de
algum descanso. À tarde, geralmente, os caçadores se espalham: uns vão para os
barreiros à procura das jacutingas e das caças miúdas que afluem a esses lugares; outros procuram os macucos ,
urús, e nambus-guassú , pássaros que acodem pelo pio, e os outros se entregam à
pescaria, armando espinhól , redes de barranco
e varas de espera ou, com longas linhas , sondando os fundos dos poços à
procura de Surubis, e dos Pintados, pois, da habilidade e sorte nessas excursões , dependem a fartura
e a variedade do rancho.
É oportuno
recordar também que o amago da mata virgem e os álveos dos rios são verdadeiras
caixas de ressonâncias; a acústica ali tem um grande potencial.
O estampido
do tiro , o grito do caçador , o ladrar do cão, e a menor pancada na canoa, ali
se alteiam , se avolumam e tomam diversas modulações; retumbam à distancia com
intensidade e vigor. Agora, nessas caçadas , o momento supremo, épico, para o
caçador, é quando a anta , surpreendida distante do rio , é alcançada no
percurso por uma matilha numerosa e afoita , que a veja pegando pelos garrões.
Nesse
momento, a emoção, o entusiasmo, a exaltação da cachorrada , é tal, tão
fragorosa , que contaminam ate mesmo a própria natureza! O ambiente e a alma do
caçador enchem-se também de sensações novas , indescritíveis e intensas! Tais
espetáculos só são comparáveis ás “torcidas” em competições futebolísticas ,
com agressões reciprocas de jogadores e do próprio juiz...
Confesso te
sido esse para mim o espetáculo mais atraente, mais emotivo e agradável a que
jamais assisti.
Não menos
empolgante é o tombo , a todo peso do animal na agua , quando, nesse gesto
instintivo de defesa, ela leva grudada aos garrões alguns cães e, após esses,
caem no mesmo lugar outros e mais outros , enfim a matilha toda...
A anta, ao
cair , desaparece num longo mergulho , ao passo que os cães , decepcionados e
latindo raivosamente em forma de leque , se espalham por todo rio à procura da
bicha e, quando esta emerge no meio da correnteza , é de se ver a sofreguidão
com que toda a matilha , em nado veloz, para ela converge, mas, nesse interim,
a caça, pressentindo o inimigo se aproximar , engana-o num novo mergulho. A
esse tempo, os caçadores , que, em canoas, se encontram a espera em diferentes
e afastadas voltas do rio e que, tomando por ponto de referencia a assuada
hilariante dos cães , para lá aproam suas frágeis embarcações e, de cabelos arrepiados , nervos retesados em fortes
e vigorosas remadas , ali também
chegam , pondo a alma pela boca em
disputa do primeiro lugar... Com aproximação desses, os cães com ares
vitoriosos , redobram suas expressões de animação e alegria. Nessa hora, o
caçador veterano, , que não tira os olhos da barranca oposta do rio , descobre a cabeça da bicha ,
num gesto de trans-pô-la e e galgar
novamente a mata. Mas, nesse instante ,
veloz, sem perda de tempo , lhe desfere o primeiro tiro , em cujo gesto é
secundado pelos demais companheiros , recebendo, então , a caça uma saraivada,
quase sempre mortal , de chumbo “Paula Sousa”. Verificada a morte , o que é fácil, pelas manchas de sangue e
bolhas de ar que veem a tona dágua , expelidas pelo animal nos estertores da
morte , os caçadores se postam a algumas dezenas de metros abaixo do ponto a
que se deu o tiroteio , e esperam que a caça flutue , o que se da alguns
minutos depois , ou tão logo ela encha o ventre dágua.
Apanhada a
presa, é ela arrastada a uma das margens
da corrente, e ai, já reunidos todos os caçadores , em regozijo da vitória , e,
encerrando a peleja , dão gritos retumbantes , salvas e repicam as buzinas ,
aumentando com essas expansões também o entusiasmo dos cães, que já então deliram! E é de se notar o ar de
importância de cada cão que, ao se aproximar da vitima , como quem esta
convencido que contribuiu para o êxito da luta , procura tirar sua desforra ,
mordendo-a e sacudindo-a nervosamente...Após o que, deitando-se de lado com a
língua de fora , todo lampeiro e
resfolegante. Verificada, então, a presença de todos os cães, é a caça colocada
numa das canoas , rumando todos em seguida para o acampamento , onde o
cozinheiro os espera com o suculento almoço , que é acompanhado de excelente
caninha, fazendo-se de permeio o comentário dos lances mais interessantes da
jornada.
***
Ora, muito bem.
Com esta despretensiosa explanação , fica o leitor
neófito em venaturas mais à vontade para
acompanhar-me na que passo a descrever.
Volvamos, por isso, a Fartura, onde teve o inicio a caçada em
referencia.
Dias depois de havermos cometidos aos nossos conhecidos,
Frederico Butter e José Neto , a tarefa de organizar uma caçada nos sertões do
Parana, fomos avisados por eles de que tudo se achava pronto , podendo-se dar
começo à viagem, acrescentavam os informantes que a partida da caravana se
daria na segunda feira próxima , servindo de
ponto de reunião dos caravaneiros a fazenda Santána , de propriedade do meu cunhado Manuel Custódio , e onde eu e o
Oliveiros assistíamos.
Preveniam-nos também de que, dali, só sairíamos eu e o
Oliveiros , e eles: Frederico e José Neto e mais o cozinheiro Paulo e o
tropeiro José Fraga , o qual seria
incumbido de tomar conta de dois cargueiros que levávamos e dos animais de sela
, no ponto em que houvéssemos de tomar as canoas. Quanto a essas e aos pilotos
, que deviam integrar a comitiva , seriam contratados na boca do sertão , que
era , então, pouco além da cidade de Jacarezinho , e entre agregados da
“fazenda dos Alcântara” , na parte que
estas confinavam com o ribeirão
“Jacarezinho” , quasi na foz do “Cinzas”. Finalmente , tudo previsto e nada
faltando , numa manhã neblinosa de maio
, que exhauria , partimos de fartura por estradas estreitas e tortuosas – para
não dizer picadões -passando por Carlopolis e Ribeirão Claro , que, naquela era
prisca, não passavam de apagados esboços das cidades que são hoje, rumo a
Jacarezinho, que, também , não era mais do que um burgo pobre, onde pernoitamos.
No dia seguinte, auxiliado pelo amigo velho da família,
Cecilio Rocha , que ali já se achava residindo, nos orientamos melhor sobre a
excursão pelas selvas, tendo conseguido mesmo, por indicações desse amigo ,
arranjar emprestado mais alguns cães anteiros.
Prosseguindo a viagem, pela tarde, fomos pousar na fazenda do
sr. Bibino Alcantara , o qual nos acolheu coma fidalguia peculiar a todo bom
mineiro.
Ocorre-me inserir aqui o episodio que guardo na memoria: Era
alta a noite quando eu e o Oliveiros, dormindo sono profundo, devido ao cansaço
da viagem, fomos despertados com um jorro dágua que caia sobre os nossos
leitos. Só então percebemos que desabava forte tempestade, tendo arrebatada
pela ventania uma parte da cobertura da casa, que era de cavacos de madeira... Com as vestes e as camas algum tanto molhadas
e ainda sob a impressão do susto , comentávamos o ocorrido , quando nos
apareceu o bom velho Bibino, de candeia de azeite em punho, inquirindo-nos como
nos achávamos , porquanto ele e a
senhora haviam sido também vitimas do mesmo acidente. Lamentando o sucedido ,
mas, sempre de bom humor , o nosso amigo nos passou para outro comodo da casa,
onde , trocamos também de roupas , pudemos dormir, mais comodamente , o resto
da noite . Entretanto , o susto e o aguaceiro que caíra a noite não serviram
de óbice a que nos puséssemos , cedo, a
caminho, tal era nosso anseio de entrar em contacto com a natureza bruta. De
sorte que, entre 9 ou 10 horas da manhã, por vereda sinuosa e só acessível a
cargueiro , transpúnhamos o “Ribeirão Jacarezinho” , apeando na casa do caboclo , pioneiro, José da Silva,
cuja residência estava situada no limiar , mesmo na boca do sertão. Dali para
diante , não existia mais gente batizada , repetia , vangloriando-se , o caboclo...
Agasalhados pelo mestiço , como se fossemos velho camaradas ,
o qual, adivinhando de pronto o que pretendia-mos , foi logo , e obsequiosamente , se
encarregando de completar nossa caravana , arranjando-nos as coisas e os
elementos de que ainda precisávamos. E assim foi que, naquela mesma tarde ,
estávamos com tudo pronto.
Contávamos então com quatro canoas e mais quatro companheiros
, sendo que dois desses eram índios mansos ; elementos que- diziam-nos – pela
pratica que tinham dos costumes do bugre
, nos poderiam precaver contra uma cilada deste. Nada faltando , a partida fora marcada para a
manhã seguinte. Porem , lembremo-nos de
que o homem põe e Deus dispõe , diz o ditado
...
A amanhã em apreço , amanheceu chovendo e chovendo continuou
por dois dias a fio , transtornando assim o nosso programa. Melhorando o tempo
, no terceiro dia , foi resolvido que parte da comitiva partisse nessa tarde
para a foz do “Cinzas” , onde aguardariam os remanescentes , na manhã seguinte
, para juntos prosseguirem até a foz do “Laranjeirinhas”, ponto terminal da
incursão e que seria a sede do acampamento.
Embora sendo eu e o Oliveiros dos destacados para seguir na
manhã imediata , fomos, como chefes do rancho, assistir a partida das primeiras
canoas. Ao chegarmos as margens do ribeirão, tivemos, no entanto, uma surpresa,
ao ve-lo transbordante , sinal de que as chuvas haviam sido mais
abundantes do que nos pareceram. Achando
a corrente impetuosíssima , adverti aos que tinham de embarcar da temeridade e dos riscos que iam correr , mas, não se
convencendo e havendo confiança nos pilotos , lá se foram e, mais felizes do
que nós , que partíamos no dia seguinte.
Assisti, então impressionado, à partida , uma a uma, daquela
esguias e frágeis embarcações , que saiam superlotadas! Não digo que as mesmas
deslizavam , porquanto a minha impressão era que voavam impelidas pela
velocidade da corrente! Da riba , nas pontas dos pés e de cabeça erguida , até
onde a vista alcançava rio abaixo ,
acompanhei apreensivo aquele destemidos e valentes sertanejos, cujas camisas enfunadas
pela brisa panejavam fortemente nas costas.
Naquela noite custei conciliar o sono , pensando na sorte
daquela gente e na nossa partida na manhã seguinte, consolando-me , um pouco, a
esperança na vazante do rio durante a noite , porem enganei-me , pois, ao
alvorecer, ainda extravasava ... Não obstante , procurando não denuncias os
meus receios , já que os companheiros se aprestavam para a partida , tratei de levar também para
dentro da embarcação o que era meu: capa, coxonilhos, mantas, e um cobertor,
objetos esses que me serviriam de cama ; armas de fogo e diversos vidros de
medicamentos , pois , na ocasião , vivia em constante uso de remédios ,
procurando combater uma dispepsia hepática , que já e tornava neurastênico.
Éramos quatro a embarcar , inclusive o velho Silva , que, desde a véspera , se
oferecera como piloto garantindo-nos levar a porto segura sem perigo algum.
Por precaução e apesar de não saber nadar , ao sentar-me no
meio da canoas , me despojei das botas , paletó e calças , ficando em trajes
simplíssimos, não obstante o frio que fazia. A canoa partiu com uns 10
centímetros apenas de borda fora dágua. A minha impressão era que
navegávamos a 200 milhas horarias, tal a
impetuosidade da correnteza. Chumbado a embarcação , procurava não mover sequer
a cabeça, vendo nos flancos somente o
que os olhos alcançavam, , movendo-se dentro das orbitas...
Ao transpor a primeira corredeira , a canoa tomou um pouco de
dágua, não havendo, no entanto, outra consequência a não ser ligeiro susto. Na
segunda corredeira , não tivemos a mesma sorte: além dos borbotões dágua serem
mais altos, a canoa resvalou por sobre uma pedra, tendo num movimento ,
oscilatório recebido quantidade dágua suficiente para leva-la ao fundo. Como
era natural, houve alarme, e grande susto ao vermos a morte diante dos olhos!
Felizmente , o caboclo velho, do leme, não perdera a calma e, num gesto
instintivo, aproou a canoa para o barranco , compelindo-a com fortes remadas , de sorte que, ao
submergir de todo , já se achava perto da terra , e foi quando nós todos,
lívidos e apavorados , agarrando-nos em
galhos de arvores e ramos, conseguimos
galgar o barranco.
Só depois de nos refazer do abalo produzido pelo susto, e de
recuperar a calma , foi que o companheiro que vinha conosco , moço, bom nadador
e mergulhador, conseguiu trazer à tona a embarcação e a parte da carga mais
volumosa . o que era coisa miúda lá ficou . E foi assim que, naquele meu
batismo de agua, ao penetrar no sertão e
que poderia ter me custado a vida , deixei sepultado no fundo do “Rio
Jacarezinho” um belo par de botas ,
diversos medicamentos e a dispepsia hepática que me apoquentava naquela
ocasião. Pois, com a falta de remédios , desapareceu também a doença...
Como não existisse dali para baixo mais corredeira para se
temer e ficando a canoa aliviada de uma parte da carga , inclusive de dois cães
que estavam em nossa companhia e que ,
ao caírem na nágua , se desatrelaram e se meteram pela mata , mais
confiantes prosseguimos a viagem, , juntando-nos à tarde aos companheiros que nos haviam
antecedido na rodada. Na manhã seguinte, navegando já em aguas do “Cinzas” ,
fomos nos acampar e, definitivamente , quase que na foz do “Laranjeirinhas”,
num ângulo formado pelo rio e um riacho de cujas águas nos servimos. O resto do dia entregamo-nos em
roçar e carpir o local, armar as barracas , giraus e trempes provendo-nos também de lenha.
***
No dia imediato,
achando-se tudo em forma e obedecendo-se a um programa preestabelecido , deu-se
inicio as caçadas. Antes, porém, de entramos na
descrição destas , devo registar que se comentava ainda, e sob a impressão de horror , em Jacarezinho , o
massacre de diversas famílias de caboclos , que habitavam a foz dos rios Jacarezinho e Cinzas , cujas
casas foram também queimadas pelos bugres. Quatro anos atrás. Explica-se,
assim, o receio com que os componentes da caravana penetraram naquelas selvas ,
sendo que alguns o sentiam exageradamente , destacando-se entre esses o Paulo ,
“cozinheiro” , que de inicio nos declarara que no abarracamento não ficaria
sozinho, e por todos os dias tínhamos de destacar um companheiro para fazer
companhia ao “valente”...
Sendo a caçada de anta , consonância , com a epígrafe desta
narrativa , o principal objetivo dessa nossa digressão pelo sertão, tínhamos o
cuidado de todas as manhãs iniciar a caçada , soltando os cães sobre os
rastros dessa caça, porém, na maioria
das vezes , em vez de anta , vinha ao rio veado. Apesar de todo nosso empenho,
só conseguimos abater duas antas durante a temporada.
Todavia, o sacrifício de uma delas esteve bastante movimentado , com lances
emocionantes , que nos deram muito prazer. Pela abundancia , tornou-se a caçada
de veado nosso melhor divertimento , convencionando-se entre os companheiros ,
depois dos dois ou três primeiros dias de caçada , que os veados não seriam
mais abatidos a tiros, mas, sim , seguros pelo rabo e afogados. E era de se ver o desespero , a aflição do
animal , quando via uma ou duas canoas aproadas
para seu lado, e, compelidas por vigorosas remadas , se aproximarem deles!
Nessa hora, a caça, como que compreendendo o risco que
corria, estremecia-se toda e gemendo,
como se fôra gente, em movimentos rápidos, procurava o barranco , mas
geralmente era alcançada antes de galgá-lo , para seu infortúnio...
A caçada de pássaros e a pesca , como complemento das outras,
também não estiveram más, garantindo ao
nosso rancho certa variedade e abundancia
de alimentos.
Sentindo-nos à vontade e despreocupados, a vida na barranca
nos oferecia indefinível encanto , tornando-nos enamorados da natureza bruta. À
noite , enquanto uns se divertiam jogando uma queda barulhenta de truque,
outros, à margem da corrente , sob o céu estrelado , ao som da viola dedilhada
pelo José Neto , cantavam canções contagiosas e evocativas...
Extenuados , com o dia cheio de emoções e movimento, o
cansaço , suprindo o desconforto da
cama, nos proporcionava sono profundo e reparador. Pela manhã , ao nos
despertar , em vez do silvo agudo das locomotivas , das buzinas enfadonhas ,
dos automóveis , do ronco dos aviões e outros ruídos , que caracterizam a
civilização , tínhamos o murmúrio suave
da corrente , o tagarelar dos pássaros verdes, que, em bandos e aladas revoadas
, cruzavam o rio ; ao lado da barraca , o pio suave do macuco , pouco além o
trilhas do nambú, e já na quebrada o cantarolar dos urús...
Estávamos
assim no melhor dos mundos, quando o cozinheiro nos deu a decepcionante noticia
de que o açúcar e o pó só davam para aquele dia e que o sal , se tivesse que
salgar mais carne de anta ou veado não bastaria. Tal noticia , além do
descontentamento geral, deu causa a que José Neto individuo de má catadura , rude e grosseiro ,
em recriminação acre ao cozinheiro , pela imprevidência e desperdício de
alimentos , o xingasse de nomes feios , arrematando com este “cadáver de
defunto”!! cujo epíteto – desconhecido para mim- foi o que mais ofendeu o nosso
homem...
Sem onde ir buscar aquilo que constitui a vida do caçador ,
notadamente café, não tivemos que enrolar as barracas e nos pôr a caminho de
casa, na manhã seguinte.
Antes, porem, de encerrar esta narrativa venatória , devo
contar que, no decurso da incursão , tive uma distração a mais do que meus
companheiros. Era que, observando os movimentos do Paulo “cozinheiro”
-homenzinho amarfanhado e coxo – cuja sujeira das vestes já ressaltava, notei mais que, todas
as vezes que o homúnculo picava carne , toucinho ou sujava as mãos com qualquer
outra coisa , as limpava nos fundilhos das calças, formando de um e do outro
lado das nádegas dois grandes discos ,
escuros , pastosos e reluzentes... Foi quando , sentindo que a comida feita
pelo Paulo não satisfazia mais o meu apetite , que aumentava dia a dia , com a
vida movimentada de caçador , fui-me
imiscuindo na cozinha ,e , aconselhando-o e ajudando-o em tudo até mesmo no
mexer das panelas e refogar os alimentos , passei a preparar pratos , tornando- me até especialista em fazer
arroz com palmito...
Foi nessas circunstancias que aprendi a cozinhar...
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