O sete
orelhas
Escrito em 1843 por Joaquim Norberto de Sousa
Era noite; — e em casa de Januário Garcia tudo estava mudo e
melancólico; ali, na rica sala apainelada e trastejada à antiga portuguesa,
tudo respirava silêncio como em velho templo esbroado e decaído... Apenas
escassa e trêmula luz do candeeiro, que bruxuleava já à míngua de óleo,
palidejava nas empoeiradas paredes... Apenas lá, de quando em quando, suspiro
doído ou lânguido gemido, quebrava o silêncio da tristeza, em que tudo parecia
repousar...
Era ele; era Januário Garcia que suspirava, que gemia de dor,
de saudade e de incerteza!
Pobre pai! Havia três dias, que o ilustre sorocabano,
sentado numa cadeira, reclinado nos negros braços de jacarandá, com a cabeça
esquecida entre as mãos, e todo recolhido dentro de si, meditava profundamente,
mergulhado nos mais tristes e torvos pensamentos. Sequer, lá de vez em quando,
como que despertando de profunda letargia, volvia os olhos para a filha, que a
seu lado acompanhava-o na tristeza e melancolia, e suspirava. Olhava ela
ternamente, e respondia-lhe ao suspiro com ai ainda mais pungente; que ai era
esse despegado do coração angustiado com o repassar de tristes amarguras; ai,
que ia longe, lá onde o pensamento se perdia, baldo do conjeturar; e após,
deixava que languidamente dobrasse ela a cabeça contra o colo, como que para
chorar; que nem lírio, que debruçando-se de sobre a haste, inclina o caule,
entornando as gotas do orvalho da madrugada!
O relógio soou por doze vezes.
— Meia-noite, disse Januário Garcia, erguendo-se com
impaciência. Meia-noite, e ele ainda não veio, e ainda esperá-lo-ei, e não
virá! Há três dias, há três noites a esperá-lo aqui, a contar uma por uma as
horas que me vibram na alma a desesperação; a olhar a porta, e parecer-me vê-lo
entrar! Mas em vão, minha Paulina, o tenho esperado, e em vão esperá-lo-ei
talvez para todo o sempre! Ah! que ansiar de vê-lo! E no entanto, tu, minha
filha, nada contar-me-ás? É possível que nada por ti conjetures, que nada
desconfies?
E abundantes lágrimas desciam dos olhos da donzela,
serpeando-lhe pelas belas faces, que eram de carmesim, apagado e perdido no
alvorecer da delicada tez.
— Sempre a chorar e a gemer, Paulina! Ah! por minha vida,
que isso me constrange ainda mais!
— E o que hei de eu fazer? Que direi, que conjeturarei, que
desconfiarei, no meio de tantas incertezas, que qual mistério nos cingem? Fui
eu porventura algum dia a depositária dos seus segredos? Não; e pois, nada mais
sei que meu pai. Não lhe ignoro as aventuras das caçadas, e as apostas nas
corridas com os companheiros, que tudo era narrar-me ele os seus triunfos.
— Porém, acaso nada te confiou na véspera dessa madrugada em
que desapareceu? Algum tanto reservado comigo, muito mais que franco para
contigo, talvez que por uma ou outra palavra se desse a perceber?...
— Nada absolutamente.
— Durante esse dia, conservou-se triste e pensativo, com a
cabeça elevada para o céu, como que preocupado por pensamentos que não eram da
terra, e sem ousar de dar uma palavra, como extasiado com o que lhe passava na
imaginação.
— Assim também o vi eu, e tanto que lhe perguntei: — Por que
estás triste? Qual é o teu pensamento? — E ele nem sequer me respondeu; porém,
suspirou; e percebi que sofria, que um não sei quê de cuidoso o atormentava.
Interroguei-o de novo; esperava pela resposta, mas nem palavra, nem suspiro...
Mudo era, e mudo ficou, como se a alma lhe não habitasse mais naquele corpo.
Assentei-me junto dele, instei, mas embalde, que nada consegui. E só alguns
minutos depois, me disse tristemente que seu mal era grande, grande como eu o
não supunha; muito grande, porque lhe vinha do peito, e que eu não podia
mitigá-lo. Então me tomando a mão, colocou-a de sobre o coração, que batia, e
batia muito.
— E por quê?
— Não sei; mas quis sabê-lo, e por isso observei-o por todo
esse dia. Mas ele conservou-se ou sempre melancólico, silencioso, pensativo, ou
dando de momento em momento mostras de impaciência. À noite, porém, ceou
conosco, e mostrou-se menos contristado e insofrido. Não foi assim?
— Conversou, porém pouco, e parece-me e tenho cá para mim,
que procurava ocultar-me o pesar, ou o quer que era, que lhe calava pela alma,
pelo coração, por todo ele.
— Sim, esteve pesaroso, e acabada que foi a ceia, retirou-se
direito para o seu aposento. Eu fui assentar-me junto de mamãe a ler para ela
as Horas, e depois, dirigimo-nos à capelinha para aí rezar o terço; mamãe
mandou chamá-lo...
— E ele respondeu que estava indisposto, que não podia vir,
não?
— Assim disse. Mas quando me fui deitar, soavam dez horas, e
ouvi-lhe a voz, que docemente acompanhava com sons de guitarra, ao melhor
tanger; abri manso e manso a minha janela, de modo que não fizesse estrépito,
porque não perdesse uma só palavra e porque não me desse a conhecer na minha
curiosidade. A noite, que estava linda e clara com a luz da lua que brilhava no
céu entre as estrelas, fez-me que assim pudesse vê-lo distintamente, sentado
num dos bancos de pedra do caramanchão de maracujá; era ele que cantava e
tangia.
— E o que cantava?
— Uma xácara.
— Mas que xácara?
— A do Bernal Francês, aquela que mamãe nos ensinou quando
nos acalentava; não a dizia, porém, do princípio ao fim, mas tão somente aquela
pane:
Quem bate à minha porta,
Quem bate oh! quem está aí?
— Sou Bernal-francês, senhora,
Vossa porta a amor abri.
Como o ouvi por muito tempo, suspirei afinal, quase que involuntariamente;
ele ouviu-me, deu fé de mim à janela de onde eu o enxergava por entre as folhas
das árvores, e calou-se. Depois, ergueu-se e seguiu não sei para onde. E eu,
como estivesse cansada e a bocejar, quase caía por fim de sono, pelo que fechei
a janela e recostei-me no leito, tendo encomendado a mim e a ele ao Anjo da
Guarda. Adormecida, passava por ligeira modorra, sonhava com palácios e fadas,
e via-me, no meio de tanta grandeza, casada com um príncipe encantado, quando
de repente, despertando, ouvi-lhe ainda a sua voz e os mesmos versos da
cantiga, vindos porém de mais longe.
— E depois?
— Depois só ouvi o canto dos galos, e arredo, muito arredo,
os latidos dos cães, e para logo dormi.
— E onde estará ele agora?
— Deus o sabe e Deus no-lo trará, respondeu a velha Ana que
vinha a entrar.
— Nada desconfias por ti? perguntou-lhe Garcia.
— E de quê? Tem-se-me feito essa pergunta uma, vinte, cem e
mil vezes! Deixá-lo, deixá-lo que Deus no-lo trará a seu bom tempo. Sem dúvida
alguns amores o retêm por aí, que isso de rapazes dos vinte até os trinta é
nunca cansar de correr. Lembras-te daquela formosa moçazinha?...
— Qual moça?
— Pois não conheces D. Leonor...
— Não.
— Conheces, conheces muito bem, que já a viste; é porque não
te queres lembrar; assim te não lembrassem tristes coisas!
— Pode ser. Mas por onde irá aquele rapaz?
— Deixá-lo lá andar. Olha, o nome do pai da moça é um nome
que quase nunca me esquece... e entretanto agora... olha, chama-se... chama-se
ele... chama-se Antônio Simões... da vila de Itu.
— O nosso hóspede! Há dois para três meses que o pai e a
filha aqui estiveram, que foram nossos hóspedes, e desde então talvez?...
— Sim, eu por mim não duvido da existência de alguns amores
entre eles.
— E nem tens razão para o duvidar, que se a criança sair ao
pai, temos muito que se lhe diga e que ver.
— Mas essa menina estava prometida a um sobrinho de Antônio
Simões, que a esta hora em que falamos talvez já a tenha por mulher.
— E o que tinha ele com isso para deixar de amá-la? Cego,
que tens olhos e não vês; surdo que tens ouvidos e não ouves, vê que te
descubro tudo; nosso filho ama, delira, enlouquece por D. Leonor!
Dizia bem a discreta mãe, que na pupila dos olhos do
mancebo, não queria ele mais outra imagem que o alvo semelhante de Leonor; no
coração não lhe existia outro sentimento mais que o desse amor que ele lhe
votava tão abundante; dos lábios não lhe pendia outro nome que não fosse o de
Leonor, nem na imaginação trazia outro pensamento que o consórcio dessas duas
almas que verdadeiramente se amavam.
— E como sei de tudo, prosseguiu Ana, porventura me
comunicou ele o quer que seja? Não, mas meus olhos viram gestos que exprimiam
esse amor, e meus ouvidos escutaram palavras que o explicavam.
E depois tudo isso confirmará uma dessas insignificâncias
que passam desapercebidas para nós, e que entretanto são muitas vezes assaz
entendidas de dois corações atormentados pela necessidade de se abrasarem em
segredo, de sufocarem em si mesmo a explosão de delírio, de encanto, de prazer,
de angústia, de saudade, por tudo isso que aí se diz com uma única palavra —
amor!
Na manhã em que Antônio Simões partiu para Itu com a filha,
entrou Ana, casualmente, no aposento onde essa dormia, e notou que ali tinha
deixado uma bela rosa. Poucos instantes depois já lá não a viu, e passando pelo
aposento do filho, encontrou-a em um lance de olhos; tinha-a ele entre as mãos,
junto dos lábios, sob os olhos, donde lhe caíam algumas lágrimas que lhe
rolavam pelas faces.
Isso tudo ponderava Ana.
— E de que serve isso? replicou Garcia. Muito longe vamos da
verdade, pois que todas essas conjeturas e desconfianças mal nos podem instruir
para a decifração deste enigma.
Sentou-se Garcia entregue de novo à tristeza, às conjeturas
e desconfianças que tanto o confrangiam. Ana recostou-se sobre um velho canapé,
e em breve tudo tornou-se silencioso como no exemplo que se fecha às orações
dos fiéis, após esses cânticos místicos e religiosos dos sacerdotes; após esses
sons melancólicos e melodiosos do órgão, impregnados do incenso sagrado, que
expiram tão branda e sossegadamente pelas curvadas abóbadas. Dormia tudo, e
apenas lá de espaço em espaço
.................murmurar se ouvia
Ao longe o rio, e menear-se o vento.
E repetia-se o ruído do oscilar compassado da pêndula do
relógio, que ficava na sala imediata, quando subitamente soou a campa do
portão: Januário, Ana e Paulina ergueram-se rapidamente. Abriram-se janelas,
escancararam-se portas, que tudo era querer ver quem batia tão de rijo a tais
desoras, com aqueles corações palpitando de esperança e também de incerteza;
mas a esperança não foi longa, nem também a incerteza durou, que um momento
depois entrou um tropeiro, que descobrindo-se respeitosamente, saudou a todos,
tirou de uma carta, que beijou e entregou-a a Januário Garcia.
— Donde vindes? perguntou-lhe Ana.
— De Itu, respondeu-lhe o tropeiro.
E o sorriso da esperança passou então ligeiramente por sobre
aquelas faces que iam a enrugar-se, com não sei quê de triunfante, como um
lampejo de tempestade que lavra rápido pelo céu; ela via nessas palavras do
tropeiro alguma coisa que confirmava as suas predições; para ela não havia
dúvida, Leonor pertencia para sempre a seu filho.
No entretanto Januário Garcia apressando-se em ler a carta,
dirigiu-se ao candeeiro, cuja luz conseguiu avivar, Ana e Paulina o rodearam; e
o tropeiro, que os viu assim atentos, pondo o chapéu de palha sobre a cabeça e
procurando evitar que o poncho lhe roçasse pelos umbrais, retirou-se
furtivamente.
— Ah! disse Januário Garcia, que má nova traz-me aqui este
homem!
E a carta lhe caiu das mãos, que lhe tremiam convulsivas, as
artérias pulsavam-lhe, os olhos revolviam-se-lhe com violência em duas órbitas
de fogo, como a pupila da sucuriúba quando avista a sua presa.
Paulina, inclinando-se, levantou a carta, leu-a em voz alta:
"Sr. e amº:
O vosso Filho, o vosso querido Antônio, acaba de ser atroz e
barbaramente assassinado, hoje em Itu. Resignai-vos.
Vosso amigo e criado.
Anônimo”.
E essa mãe, que prezava o filho como partícula do coração, e
essa irmã, que estimava o irmão como porção da alma, abraçaram-se penetradas da
mais angustiosa e acerba dor, para misturarem seus gemidos e soluços e suas
lágrimas!
— Resignar-me? Resignar-me? Nunca! Ao menos enquanto não
vingar-lhe a morte! E voltando-se para o lugar em que deixara o tropeiro e
olhando em tomo de si: o que é desse homem, o que é do tropeiro? perguntou
Januário Garcia.
— Escuta; não ouviste o retinir da campa?
— Sim.
— Não ouves o latido dos cães?
— Sim.
— Não ouves o trotar do cavalo?
— Sim, e então?
— Já partiu.
— Ah, já partiu! Pois bem, vou-me lá, que não hei que
temer... de Sorocaba a Itu é só um passeio... vai-se com facilidade... e embora
fosse longe, mesmo no fim do mundo... Oh lá de dentro, gritou ele para o seu pajem.
O Anselmo! Vamos depressa num pulo à estrebaria, e o meu cavalo aqui pronto e
selado... vamos; quero tudo em um abrir e fechar de olhos, tudo...
E o pajem que tinha aparecido como por encanto, desapareceu
como um relâmpago no adelgaçar das trevas.
Então voltou-se ele para a cara filha, que soluçando,
chorava repassada de angústias, trespassada de dor, chorava estreitada nos
braços de sua mãe, que parecia dizer:
— Ah! só esta me resta, não ma roubem que o outro perdi-o,
perdi-o para todo o sempre!
— Não chores, minha Paulina; não chores; a morte de teu
irmão impõe vingança, mas vingança que nem o céu aprova, nem no inferno vai
vibrar de prazer as almas forçadas aos castigos eternos! Deixa que eu o vingue,
e então choraremos sem opróbrio, como Davi chorava o seu Absalão!
Recordar-nos-á aquele quadro com pungente saudade a nossa antiga alegria,
mostrar-nos-á ele eu e tua mãe, gozando da frescura da tarde sob o carramanchão
do maracujaeiro, alastrado de roxos martírios, contemplando-te com as Horas
sobre um dos nossos joelhos, toda penetrada da sua leitura, e mais distante, lá
onde o sol vai a descambar entre nuvens purpúreas do ocidente, o teu irmão, o
meu Antônio montado em fogoso cavalo, tangendo a buzina e seguido de cães
veadeiros, e uma lágrima descer-nos-á pelas faces todas as vezes que
levantarmos os olhos para vê-lo!
— Ah! que lembranças tão cruéis!
— Consolemo-nos, minha filha, com a vontade de Deus.
— De Deus, repetiu Garcia, de Deus!
E olhar de cólera caiu sobre a esposa, que estremeceu de
terror.
— Dize antes, ajuntava ele, vontade de assassinos, vontade
de sicários que me roubaram o tão caro filho, e dos quais jamais poderei
havê-lo! O morrer de um filho abre longo futuro; futuro de desesperação, de dor
e de saudade, que só tem termo na lousa do sepulcro, que franqueia o caminho
para a eternidade; o morrer de um filho é um vácuo que fica no coração; esse
vácuo que ocupava o amor de gozá-lo, vácuo que a saudade dilata antes que o
encha, mas que far-me-á desaparecer a consolação da vingança!
E pois, consolar-nos-emos; não com a vontade de Deus, mas
com a sua vingança.
Bradou Garcia, e entrando no seu aposento, pôs o chapéu de
palha na cabeça, cujas largas abas se lhe debruçaram pelos ombros, envolveu-se
em seu poncho e pegando de uma faca, que era de têmpera fina e cujo cabo e
bainha de prata tinham por lavrado a firma de seu pai, enfiou-a no cinto de
couro que o cingia, e saiu para a sala.
— O meu cavalo? perguntou ele.
— Pronto, respondeu o capanga.
— Adeus, disse Garcia, precipitando-se para fora da sala.
— E aonde vais, Januário, aonde e a estas horas? murmurou
Ana.
— A Itu, e cedo nos tornaremos a ver.
E partiu.
E ouviu-se o retinir da campainha, depois o estrépido da
cancela do portão, depois o trotar do cavalo, depois soluços, soluços; tudo era
soluços!...
Paulista infatigável, conhecia Januário Garcia não só os
arredores de Sorocaba, mas toda a Província de São Paulo, e ainda mais, que não
ignorava ele o trilho impresso nas campinas, aberto nas brenhas e assombrosas
florestas, e deixado nas serras pelas formidáveis e terríveis excursões
daqueles paulistas, que armando bandeiras e prevenidos dos aprestos necessários
à ineração, partiram do Taubaté, foram faiscar terrenos onde vislumbravam
granitos de ouro escapados aos principais mineradores, andaram em descobrimento
de pedras preciosas; travaram combate de morte junto ao Rio, que desde então
ficara intitulado das Mortes, e aonde ainda hoje a tradição honra a memória de
Domingos da Silva Monteiro Rodrigues, cognominado Maioral os Paulistas; que percorreram
os sertões do Rio Grande do Sul, de Goiás e de Mato Grosso, dobraram a cerviz
até ali indomada do Guaicuru e conduziram-no escravo à sua habitação. Fizeram
ainda mais de admirar; que lá se foram a pugnar com espanhóis e arrasaram esses
estabelecimentos do Poqueri e do Itutu, cativaram índios e recolheram-se afinal
triunfantes a seus lares, não tendo por guia mais que os píncaros altíssimos
das cordilheiras!...
Paulista infatigável, a alma grande e generosa gostava-lhe
altas empresas, e aprazia-se no refrescar a memória com o recordar desses
feitos da fama de seus antepassados que a tradição e a história nos
transmitiram. O coração terno mas vingativo, regozijava-se com o espetáculo
sanguinolento de batalhas que lhe enchiam a mente de imagens de sangue, e de
cenas dantescas.
Sozinho, descalço, que era esse o andar daqueles tempos à
maneira dos que se prezavam de não poder ser tomados logo à um simples volver
de olhos por forasteiros ou emboabas, embuçado no poncho que era de grosso pano
pardo, forrado de outro escarlate, com chapéu desabado, a baluda a tiracolo e a
faca à cinta, caminhava sequioso de obter novas de seu filho, finado às mãos de
assassinos. Alquebrado porém de fadiga, que havia já três dias e três noites
que não repousava, e não podendo prosseguir na marcha, tomou pouso numa venda
em Cauru, que se lhe oferecia em caminho, junto de uma capela.
Mal havia penetrado na pobre e tosca pousada, que logo se
lhe apresentaram à vista sete viajantes que sentados à mesa esgotavam algumas
garrafas de vinho, péssimo como era de esperar por esses lugares tão apartados,
e outras de patrícia, de não melhor paladar. A admiração de Garcia cresceu de
ponto, tanto que reconheceu nesse grupo de sete viajantes, sete conhecidos.
— Oh! por aqui? gritou um de entre eles.
— É verdade, meu amigo.
— Grande negócio vos traz a algures, murmurou outro.
— Por certo que sim, meu amigo.
— Creio que poucas vezes deixas Sorocaba, ajuntou o
terceiro.
— Algumas, meu amigo.
— Logras presentemente grande fortuna? perguntou o quarto.
— Modesta, meu amigo.
— Gozas de grande reputação entre teus vizinhos? disse o
quinto.
— De alguma, meu amigo.
— Ouvi dizer que tinhas uma filha, cuja formosura ia a
crescer com os anos; se isso assim é...
— Bonita, meu amigo.
— Não sei que insipidez acho nessas tuas respostas! exclamou
o sétimo empunhando o copo, que transbordava de vinho.
— Não ouviste falar da morte que tivera lugar em Itu, não há
muitos dias?
— Não.
— De...
— Pois que...
— E então...
— Talvez fosse... disseram todos a um tempo e olharam-se
entre si, e o semblante de cada um deles era o semblante de todos os sete.
Januário Garcia levou o lenço aos olhos que se arrasaram de
lágrimas, pelo que não pôde dar fé de tal perturbação.
Pela primeira vez pois as lágrimas lhe rebentavam dos olhos,
represadas há tanto tempo; quis ainda contê-las, mas em vão; tentou falar, mas
balbuciou apenas imperceptíveis palavras que foram para logo sufocadas por
soluços!... O estalajadeiro chegando-se a ele, contemplava a sós com sua alma o
que ali se passava... Recolhia afinal as garrafas esgotadas e se retirava com
elas, quando um dos bebedores acenando para os outros, pagou-lhe o que beberam
e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. Despediram-se todos de Januário
Garcia, tomaram os cavalos e retiraram-se apressadamente.
— Que almas do inferno! exclamou o tal estalajadeiro.
— Beberam todo o vinho, não? É que vinham com sede, disse
Garcia; e oxalá pudesse eu imitá-los!
— Sede?... Deus me defenda de semelhante sede!... Oh se
soubésseis o que eles me contaram...
— Está bem, dir-me-ás logo tudo quanto quiseres, dormirei
mesmo ao narrar de teus contos, mas por agora dá-me aí um leito que anelo
descansar; estou fatigado e sinto-me alguma coisa adoentado.
— Isso é que é mau, que não temos por aqui cirurgião nem curandeiro
que seja: se a doença porém não é mais do que sono, entrai e repousai no
primeiro quarto à mão direita.
— Tem-me cuidado no cavalo, que suou e sua a fartar, dá-lhe
milho, manda que o esfreguem com aguardente e chama-me daqui a uma hora.
— Farei como recomendais, respondeu o vendilhão
entregando-lhe um rolo de cera aceso.
Entrou Januário no quarto indicado, desembaraçou-se do
poncho, desatou a cinta, meteu a faca de sob o travesseiro, e apagando a luz,
arremessou-se ao leito, cujo enxergão de palha de milho chocalhando em cada
movimento, revolvia-se contra o incomodado bem vindo que almejava conciliar o
sono que sói tão bem restituir o alento ao alquebrado viajante.
— Não, eu não quero nem devo ficar com este dinheiro; quem
deve a Deus paga ao diabo, e ele que o guarde! dizia à porta o bom do
estalajadeiro, e o dinheiro retinia nas pedras da calçada à entrada do pouso.
No entanto que Januário Garcia procurava, mas em vão,
entregar-se ao sono; a imagem ensanguentada do filho, do seu tão caro Antônio, apresentava-se-lhe
à imaginação a bradar vingança, e todo compenetrado de ideias vingativas,
ambicionava ele adiantar-se no caminho para chegar a Itu e vir no pronto
conhecimento da sua morte. Arrependia-se já de ter pousado, por isso que não
lhe era dado fazer-se, e estava no propósito de levantar-se para repartir,
quando as vozes do estalajadeiro vieram distrair-lhe a atenção, atraindo para
um ponto que entretanto nada tinha de diferente quanto ao pensamento que o
prendia e o preocupava há tantas horas.
— Sete, sete fariseus mal encarados, dizia o estalajadeiro à
mulher, e que fizeram pacto com o diabo para pagarem a Deus!
— E como assim? lhe perguntava a mulher.
— Entraram-me por aqui e foram logo pedindo uns após outros,
tantas e tantas coisas que não havia aí nem mãos a medir, nem tempo a perder;
um já querendo vinho do Porto, outro já desejando o de Lisboa, o terceiro já
perguntando se tínhamos congonha, o quarto já gritando por cana, o quinto já
exigindo cigarros, o sexto já instando por comer alguma coisa, o sétimo
apetecendo peixe, caça, tudo, para por fim contentar-se com um copo de
temperada. Sentaram-se após muita zambaia e cumprimentos, e eu que os servia
sem saber a qual primeiro acudisse, e que os tomava por sete folgazões, fiquei
pouco depois tão arrepiado, que as pernas se me estremeciam como se fossem
varas verdes, e eu cambaleava como se estivesse embriagado! Ah! ao ouvi-los,
tremedeiras de horror, Catarina, procurarias persignar-te às escondidas, que
não dessem eles por isso, e farias de boa vontade promessas aos teus santos
milagrosos, que te livrassem de tão ruins presenças!
— Em que, porém, falaram eles? Dize, homem de Deus.
— Em quê? Ah! se os ouvisses!... Falaram no que eu, bem a
meu bom grado, pagar-lhes-ia ainda em cima para não ouvir e saber, e embora me
enxugassem o vinho do Porto, o de Lisboa, a cana e a temperada, embora tomassem
toda a congonha e fumassem todos os cigarros, que tudo isto nem valeria a pena
de arriscar, contanto que me deixassem eles com o espírito tranquilo e sossegado,
como até aqui tenho vivido! Foram sete demônios que aqui me entraram, sete e
cada qual mais formidável, mais temível... Escuta e vê se o caso é para menos,
ainda mesmo quando se tenha o coração traquejado de um não acabar de horrores
que vai por todo esse mundo de Cristo. Relataram-me eles, como o fariam mouros,
e cada qual querendo ser o narrador, que um moço de Sorocaba se havia enamorado
de uma menina muito rica, muito linda de Du, e que por arte de namoros, que
tudo é facilitar ainda os mais invencíveis passos, conseguira introduzir-se em
casa dela, mas com tanta infelicidade, que foi para logo acolhido às mãos do
pai...
— De Antônio Simões! disse consigo Januário que o escutava e
sentando-se na cama.
— Pobre moço, ajuntou a mulher em tom de verdadeira
compaixão.
— E que pensas tu que faria ele?
— Deu-lhe de chicote?
— Bofé que não, minha Catarina, e antes mil vezes isso, que
a infâmia apenas nos indigna, mas a maldade e a fereza horrorizam-nos a todos e
deixam-nos o coração sangrando de dor.
— E então o que fez?
— Manietaram-no, continuou ele, como se houvessem capturado
algum índio ou negro fugido, e entregaram-no a esses algozes que aí estiveram a
beber, a comer, a fumar... e tão senhores de si!
— E eles?
— Eles, segundo a recomendação feita pela família da menina,
deveriam levá-lo ao pai, contar-lhe o que se havia passado, e exigir que, como
delinquente, fosse castigado, a fim de se emendar para o futuro.
— E nada disso fizeram?
— Nada! Pegaram do mísero mancebo, ligaram-no a duas estacas
e afiaram as suas navalhas...
— E depois, José?
— Esfolaram-no vivo!...
— Vivo! Senhor Deus! exclamou a mulher.
— Vivo! vivo!... replicou o estalajadeiro.
— Que horror, meu Deus! que horror...
— Depois cortaram-lhe perna por perna... coxa por coxa...
braço por braço... orelha por orelha... que tudo enviaram ao pai da menina;
acabaram-no decepando-lhe enfim a cabeça earrancando-lhe as entranhas.
— Ah! Jesus! que barbaridade!
— Assim foi; e como aqueles canibais que devoraram o bispo
da Bahia, no monte que tornou-se para sempre estéril e com as fontes secas,
eles não só se regozijavam de reproduzir por palavras o que haviam obrado sobre
o mísero Antônio, mas até bebiam, comiam e fumavam tão senhores de si, que era
abominável fúria vê-los tão criminosos e tão sem remorsos!... Assim estavam
quando entrou Garcia, esse homem que aí dorme...
— Ah! fala baixo que te não ouça ele... disse Catarina.
— Sim, mas eu sempre hei de dizer-lhe alguma coisa; coitado!
é sem dúvida algum parente... talvez o pai do moço!...
— Desgraçado!...
— Mal o viram que se deram por conhecidos; não sei, porém, o
que disse ele, que todos perturbaram-se; era a consciência que os atraiçoava.
Mas o pobre do homem nem sequer deu por isso; enxugava os olhos que se lhe
desfaziam em lágrimas, sufocava os soluços; quando eles aproveitando-se da
ocasião, comunicaram-se por acenos, ergueram-se a um tempo e vieram pagar-me.
Maldito dinheiro, que rejeitei arremessando-o à estrada; lá está, e os pobres
que dele se utilizem; Deus lhe ponha a virtude.
— Toma, resmungou-me um dos tais, em voz sumida, ao ouvido,
e dando-me algumas moedas; toma, e caluda! Para língua comprida, sete facas,
Sr. José!
— E saíram.
— E tu o que fizeste?
— Eu, mal que os vi pela porta fora, tratei do viajante.
— Oh! meu Deus! É ele! É o desgraçado pai! disse a mulher do
estalajadeiro, apontando para Januário Garcia.
— É ele!!... acrescentou o estalajadeiro voltando-se e
tornando-se pálido e imóvel.
Transido de horror, com os cabelos eriçados como a coma de
javali, apareceu Januário Garcia, cuja figura infundia terror a quantos a viam;
em pé, com a sua sombra estendida ante si, estava todo convulsivo, que os
dentes lhe rangiam de raiva, os músculos estremeciam, e os trajos balançavam
com ele; como quando palpita a terra, que tremem os troncos, e que se agita a
folhagem, parecendo convulsas as árvores. Quis falar, mas as fauces secas, mas
a língua presa, não lhe permitiram; e assim se conservou embargado por algum
tempo ante o estalajadeiro e a mulher, mudo e imóvel como os troncos robustos do
ermo.
— Precisais de alguma coisa, senhor? perguntou enfim o
estalajadeiro.
— Falai, ajuntou a mulher.
— Nada, respondeu Garcia; e metendo a mão na algibeira,
tirou de algumas moedas, que arremessou à banca; aí tendes o que eu te devo;
é-me necessário que parta antes mesmo que amanheça; já não vou a Itu, como
tencionava; meu rumo varia. Sim varia... Que a ponta de minha faca se volta
para os assassinos de meu filho, que é o seu norte! Morte e vingança a esses
sicários sequiosos de sangue, a essas onças famintas de carne humana! Morte e
vingança aos assassinos de meu caro Antônio! O meu cavalo, que quero partir, e
lá saciar a sede de vingança que me devora; eu os seguirei, e eles tremerão de
mini, e vingado que tenha tão bárbaro martírio, levar-lhes-ei as orelhas a esse
homem vil, que deles recebeu as de meu filho. Vamos, estalajadeiro, vamos!
Aviai-me!
Era ele, era Januário Garcia que pedia, ou antes que
mandava, e força era obedecer-lhe, que essa figura incutia respeito, que essa
voz que soava como um trovão, impunha obediência. O estalajadeiro cumpriu-a, e
arreado e posto o cavalo imediatamente à sua disposição, saltou Januário Garcia
sobre ele, bateu-lhe as rédeas, enterrou-lhe as esporas nos ilhais, e
desapareceu entre nuvens de pó que toldavam os ares.
Por todo o caminho tomava e exigia informações mais ou menos
acertadas, e por todo o caminho, os viajantes lhe davam, e lhe confirmavam a um
tempo, a notícia de haverem encontrado sete cavaleiros que galopavam a bom
galopar com direção à Sorocaba.
— Vão levar-me a pele de meu filho, repetia consigo; vão...
e eu lá estarei para recebê-la!
E o cavalo voava; e o paulista percorria esses campos
alastrados de boçorocas, por entre feiras de bestas, e cavalos vindos de
Curitiba, e do Rio Grande do Sul, apinhadas de traficantes, de comerciantes, e
compradores, deixando após si esse gigante famoso do Ipanema, com as suas
entranhas de ferro.
Atravessou o rio que dá nome à vila, avistou a igreja de
Nossa Senhora da Ponte, padroeira da sua matriz, esclarecida já pelos primeiros
raios do sol, que se elevava saudado pelo hino da terra, rompendo os nevoeiros,
e como que incensado por essas florestas, donde se erguem, ao bafo da manhã,
nuvens do aroma, que convidam à vida; e pouco depois apeava-se à sua porta.
Saíram-lhe ao encontro Ana e Paulina, receberam-no nos
braços, e depois ouviram, entre brados de vingança, e arrepiadas de horror, a
terrível narração que ele, a espaços lhes fez do que, não havia muitas horas,
tinha escutado do estalajadeiro do pouso de Cajuru.
Ah! já não era a morte de Antônio que deploravam, era esse
martírio, o horrível morticínio, as atrocidades sobre atrocidades que ele
sofrera antes de dar o espírito a quem lho tinha dado.
Era, porém, Januário Garcia, por uma dessas vontades de
ferro, impassível; comera alguma coisa; e tranquilo sobre sua sorte, firme em
realizar seus fundos pensamentos, mudou de trajos, preparando-se para mais
dilatada viagem; dilatada, enquanto não enchesse seus votos, enquanto o prazer
da vingança não se convertesse em riso de triunfo e de satisfação
derramando-se-lhe de sobre as faces.
— Ei-la aqui a minha faca! bradou ele; o único presente que
de meu pai recebi, e em que, por lembrança, gravei-lhe a firma sobre o cabo de
prata; com ela atravessou ele sertões, subiu e desceu essas serras altíssimas,
entranhou-se por brenhas, vagou pelas solidões das feras, e entretanto
transmitiu-a ao filho, pura e brilhante, sem pinta de sangue, limpa como saíra
das mãos do fabricante. Também esforcei-me até aqui por não manchá-la; era a melhor
herança que deixaria ao meu Antônio; e no entanto, sete vezes o sangue de sete
homens perversos, imprimir-lhe-ão inapagáveis manchas!... Ei-la aqui! Com ela
rasgarei os peitos desses mais perversos, mais indignos monstros; sim,
arrrancar-lhes-ei a vida, como eles arrancaram a de meu filho, e para provar a
minha vingança, para mostrar que todos eles pagaram ao pai a dívida do filho,
trazer-te-ei, mulher, uma orelha de cada um; trazer-te-ei pois sete orelhas!
“Cobardes! Sete contra um! Sete contra meu filho! Pois bem,
agora tudo se vos mudou; agora será um contra sete! Eu só contra todos, eu só,
que só eu devo marchar ao terrível combate!... E eles não vieram? Recearam o
encontro do leão, a luta da vingança? Pois bem! Se preciso for, ir-me-ei ao fim
do mundo a encontrá-los! Proteja Deus a minha vingança, tenha ele piedade de
mim, armando o meu braço do raio de sua justiça eterna, para desafronta de
tantas atrocidades! Se os céus desaprovam esta minha vingança, que me deixem
primeiramente encher meus votos, cumprir esta minha promessa cá na face da
terra, e depois que me rejeitem lá para os seios do inferno!...
— Misericórdia, meu Deus! murmurou Ana, levantando as mãos e
os olhos em lágrimas para o céu; perdão para ele que blasfema na sua
tribulação!...
O paulista pegou na sua baluda, e disfarçado, partiu sem se
despedir da esposa, e da filha.
Determinou-se assim para não condoer-se com as lágrimas de
saudade, com os ais da dor da separação e com os abraços da despedida, esses
laços tão curtos que aperta a partida, esses laços tão ternos que afrouxa e
desata a ausência!
E depois, a inconsolável esposa, e a chorosa filha, voltadas
ambas para o lado para onde ele seguira, levavam saudosamente os olhos, e com
eles buscavam-no através dos véus das lágrimas, que tudo envolviam...
Buscavam-no; mas em vão!
Alta ia a noite; e no céu como que dormia a tempestade
envolta em negro manto, com o seu respirar roufenho e prolongado, e lá de
quando em quando como que despertava e vibrava terrível olhar, que amedrontava
a terra; rugia o vento emaranhado nas folhas da espessura, e ouvia-se ao longe
o bramir feroz das sucuriúbas e das sussuruanas.
Só a pé, caminhava Januário Garcia, de noite como de dia, em
cata dos assassinos do chorado filho, que o juramento que fizera em face de sua
mulher e sua filha havia ele cumpri-lo, pois não há aí voltar atrás para a
palavra do paulista.
Errante, vagava em busca de asilo em que lhe dessem
gasalhado, a fim de repousar de tantas fadigas que começavam de acabrunhá-lo,
quando avistou lá mui retirada e em solidão, uma luz que bruxuleava
funebremente por entre a ramagem de alguns troncos do vale, e que lhe indicava
a existência de o quer que era de habitação humana; e para ela se encaminhou.
Era tosca e humilde choupana que se elevava sobre um combro
do vale; tinha a porta fechada, porém distinguia-se perfeitamente por entre as
carcomidas grades que lhe guarneciam a janela, as prateleiras empoeiradas da
taberna, que outra coisa não era ela. Havia botijas de cachaça, rolos de fumo,
cabaças com melaço, rapaduras, queijos... e sobre a banca que estava posta
nomeio da saleta, garrafas, copos, canecas e cangirões. Pendia do pilar uma
enegrecida candeia, cuja luz alimentada de pinhões, derramava-se pelas
esbroadas e encardidas paredes, cobertas de armas enferrujadas, e enfiando-se
pelas grades da janela ia perder-se de reflexo em reflexo pela amplidão do
vale. O coração de Januário exultou, que ainda bem não ia incomodar a algum
pobre particular, cuja delicadeza se esforçasse por lhe fazer aceitar o seu
leito; e sem mais hesitar bateu com força.
— Quem está aí? perguntou uma voz áspera e dura.
— Quem pede um pouso para si, respondeu Januário Garcia
procurando ver com quem falava.
— A tais desoras!... os quartos estão ocupados por viajantes
que vieram mais cedo, que quem primeiro canja, primeiro manja.
— Que desaforo! Então os que primeiro chegam usurpam aos
mais o direito da hospitalidade?
— Lá disso nada entendo.
— E não haverá qualquer cômodo que seja?
— Tudo está ocupado.
— Negras e pejadas nuvens anunciam próxima tormenta, o
trovão ronca aproximando-se mais e mais, o frio tolhe-me os membros, e além
disso estou mais que muito afrontado de afã e cansaço. Não há cômodos, mas se
entanto me deixas, dormirei sobre essa banca.
— Não pode ser.
— Maldito! bradou ele com energia; e a voz retumbou na
choupana.
— É o que lhe digo, retorquiu-se-lhe com voz áspera e dura.
— Ou hei de entrar, disse Januário Garcia consigo
experimentando a porta, ou as grades ou a porta me franquearão passagem.
— É tempo perdido teimar, que não abro a porta em tão
adiantadas horas.
— E o que ternos para comer?
— Fumo e cachaça.
— O que temos para comer? interrogou de novo o paulista
pensando não ter sido ouvido.
— Fumo e cachaça, repetiu o da choupana.
— Para comer?
— Fumo e cachaça.
— Fumo e cachaça!... Pois bem, abre-me, abre-me a tua porta;
quando não, abri-la-ei eu à coronhadas.
E aberta que foi a porta, entrou Januário Garcia e para logo
achou-se frente a frente com um homem claro e corado, de pouca barba, e que a
tê-lo visto tão corpulento, por certo não falaria com tanta franqueza e
audácia.
— Uma vara de fumo e um quartilho de cachaça, gritou ele
fitando os olhos do indivíduo da choupana, que ficou imóvel sem que nada
ousasse de fazer.
— Venha fumo e cachaça, replicou o paulista.
O taberneiro resolvendo-se a servi-lo apresentou-lhe uma
botija de cachaça, cuja poeira teve o cuidado de espanar, e uma vara de fumo
que cortou do rolo.
Garcia que não o perdia de vista, levou a mão à cinta, sacou
da faca e pôs-se a picar a vara de fumo.
— Dobrava-me eu de cansaço e negaste-me a tua choupana;
temia-me da chuva e não me quiseste abrir a tua porta; tiritava de frio que
todo me gelava e entorpecia, e não me valeste com o agasalho que rogava; ardia
de sede, esfalfava-me de fome, e perguntando se tinhas alguma coisa de comer,
respondeste-me que havia fumo e cachaça!
— Mas, senhor...
— Tu bem me conheceste a voz: o tom pausado denunciou-te que
ouvias a um paulista, a um desses papudos, a quem saúdas com o riso do sarcasmo
nos lábios, que ouves com a irrisão da ironia no coração...
— Não há tal, eu só quis...
— Sim, acreditam geralmente por esse mundo de Cristo, que
vive o paulista de mascar fumo e beber cachaça, e que cumprido que seja esse
preceito, pode ele fazer o juramento que bem lhe parecer, que não o fará em
vão. É essa uma zombaria provinciana e bem ridícula, mas tudo por mais sagrado
que seja se ridiculariza, e como a palavra do paulista vai-se tornando
proverbial, tu e os da tua laia deram na ébia de ridicularizá-la.
— Sim, senhor; tudo isso, porém...
— Tudo isso porém que aqui está neste copo por certo que não
será para mim, que sim para ti...
— Para mim?
— Aqui tens, que já misturei tudo, agora resta que o bebas e
sem resistência.
— Senhor, pelo amor de Deus, que essa bebida não se
acomodará muito com o meu estômago.
— Olha! Vês essas orelhas?
— Ah sois vós! exclamou o taberneiro horrorizado.
— É verdade, sou eu, Januário Garcia, que com este nome
deixo na terra o trilho da minha vingança e levo ante mim o temor a meus
inimigos; que jurei não voltar ao seio da família, sem sete orelhas... Ainda me
faltam quatro... Olha a faca que talvez jaz ainda tinta de sangue da última
vítima... Bento Pinto, Gonçalo e José Gomes, já se consomem para todo o sempre
nas chamas do inferno... Vê pois o que fazes!
— Esperai, eu volto já.
— Não, tu não me hás de escapar assim tão facilmente que
estás seguro, e seguro pelo meu braço. Quiseste te divertir comigo; e eu sou
agora quem me divirto contigo. E o que é desse teu falar tão ousado e
arrogante? Temerário, que tanto te acobardas agora, que mais me pesa do teu
atrevimento do que dele me ofendo.
— Por piedade!
— Pois bebe!
Ameaçava Januário Garcia ao pobre taberneiro segurando-o com
um braço e com o outro empunhando a faca e apontando-lhe para o peito, quando
dois indivíduos, cujos rostos ocultavam para não ser facilmente conhecidos, o
investem, caindo de improviso sobre ele.
— O número é desigual, exclamou ele com acento de Estentor;
o número é desigual, que tendes do vosso lado três contra um; mas como o valor
de um é para três, não há desigualdade alguma; aceito o combate; e ai daquele
em quem só roçar a ponta desta faca, que iguala à língua da maracaboia cujo
veneno é para logo morrer.
E a essas palavras já um dos indivíduos baqueava por terra e
ensanguentava o chão, ferido no peito... Súbito o outro salvava a vida com a
fuga, e o taberneiro prostrado de joelhos, implorava perdão e misericórdia...
— Miseráveis, tanto arrojo para tão pouca façanha, para tão
vergonhosa fuga! Quero ver, quero conhecer quem é este que mui depressa
rendeu-se à morte.
E o taberneiro que tudo era servir para bem merecer o
perdão, que não esperava por suas culpas, deu-se pressa, trêmulo como estava,
em arrancar ao exangue a máscara que lhe ocultava as feições, que não os olhos.
E era ele, Tomé Lourenço, uma das vítimas de Garcia, que mais tarde ou mais
cedo tinha que pagar-lhe com a vida a grande dívida.
Cheio de alegria satânica, com os olhos fuzilando de cólera,
com as faces contraídas pelo sorriso maligno da vingança, precipitou-se Garcia
sobre o cadáver no delírio da sua fúria e cortou-lhe uma das orelhas e a uniu
às outras que pendiam do terrível colar que trazia consigo.
— Agora, disse ele dirigindo-se para o taberneiro, agora é
todo meu empenho saber de ti uma única coisa, e perdoo-te o beber essa
nauseabunda mistura; o nome do outro? Vamos, responde! O nome do outro que
escapou?
— João Gomes, murmurou o pobre vendilhão.
— João Gomes! Esse é um, cujo cadáver também necessito para
cortar-lhe uma das três orelhas que ainda me faltam.
— Pois segui-o, segui-o sem perder tempo.
— Sim, dizes bem, segui-lo-ei; quer vivo, quer morto, tem
ele de pagar-me essa dívida que contraiu com meu filho; por agora cumpre ainda
que me digas para onde partiu.
— Por vida minha que o ignoro.
— Tu vês que um braço invisível me protege, vês que sei de
tudo, e entretanto procuras iludir-me! Que faziam esses dois homens aqui? Por
que tanto receio era o teu em me abrir a porta?
— Ah eles contaram-me tudo. Viram-vos atravessar de tarde a
estrada, e vieram ocultar-se nesta choupana, e pediram-me que negasse a entrada
a quem quer que fosse; mas que conservasse a janela aberta na forma do costume,
para não dar azo a desconfianças; três dias depois, quando já tivésseis tempo
pode caminhar longe, deveriam partir, protegidos pela escuridão da noite.
— Para onde segue o que fugiu?
— Encontrá-lo-eis na estrada que vai para Ouro Preto, que é
esse o seu destino.
— Pois bem, respondeu Januário Garcia preparando-se para
sair da choupana, amanhã ouvirá dizer que pela estrada que vai de São João
del-Rei para Ouro Preto, foi achado um cadáver; pergunta se lhe faltava uma
orelha: dir-te-ão que sim, e tu acrescentarás:
— Foi Januário Garcia quem matou esse homem; faltam-lhe
agora só duas!...
E pôs-se a caminho.
A porta da choupana fechou-se desde então para sempre, e lá
a pouca distância, duas cruzes alçadas, e algumas pedras que as rodeavam,
indicavam que ali jaziam dois corpos.
E o viajante que passava, apeava-se para lançar-lhe uma
pedra; e depois prosseguia em seu caminho orando pelas almas dos finados.
O longo decorrer de tantos dias, qual o que encerra o espaço
de dez anos, não pôde abrandar a cólera do infatigável paulista, nem fazer-lhe
esquecer os votos de vingança pronunciados havia tanto tempo!...
Dez anos tinham decorrido; e ainda o inflexível Januário
Garcia corria planícies, subia montanhas, descia vales, e se entranhava pelas
brenhas, em procura da sua última vítima.
Embuçado no poncho, com o chapéu de largas abas, com a cinta
onde prendia a faca, a terrível faca seis vezes banhada em sangue, e com a sua
baluda de coronha de pé de cabra a tiracolo, jazia uma noite recostado a uma
sapocaeira, esperando o alvorecer da madrugada, para conhecer aonde estava. O
dia que não tardou em mostrar-se no horizonte rodeado de toda a pompa e
majestade, fez-lhe ver que se achava ante uma povoação. — Foi como o grito de
terra soltado a bordo que veio inundar-lhe o peito de júbilo; que esse corpo
fatigado de tantos errores e desvios se enlanguescia, e necessário lhe era o
repouso.
Caminhou Januário vagarosamente para essa nascente Vila Boa
de Goiás, que parecia surgir do meio das flores e folhagem dos bosques que a
Contornam, e sorrir-lhe benigna, como se fosse ele o seu bem vindo. O painel
mais pomposo e mais belo da natureza, cheio de encanto, de vida, de harmonia e
da poesia, desdobrava-se-lhe aos olhos, avezados à contemplação dessas cenas, e
sempre nelas embevecidos!
Casa de aspecto menos rústico era essa que aí entre outras
se elevava no princípio da vila; e Januário Garcia parou à porta e pediu que o
deixassem descansar. Abriu-se a porta e imediatamente achou-se na sala onde
certo homem, cujos cabelos negros rarefaziam-se entre as brancas da idade
madura apresentou-se-lhe, e ambos se cumprimentaram.
— Este semblante, murmurou a um tempo cada qual consigo, no
mútuo entreolhar, não me é desconhecido!
— Senhor, disse o hóspede, vou mandar preparar o almoço:
comereis do que há por estas alturas da nossa Vila Boa de Goiás, e no entanto
descansareis; podereis mesmo vos deitar se isso vos aprouver, pois que aqui não
deveis fazer cerimônia de qualidade alguma.
— Obrigado, respondeu friamente Januário.
— E voltarei para conversarmos; que sem dúvida haveis de
saber muitas coisas antigas que serão novidades para mim, e eu estarei no mesmo
caso para convosco.
— Sim, senhor, voltou-lhe Januário.
— Esquecia-me perguntar se não quereis mudar de trajos.
— Agradecido.
Retirou-se o hóspede; e Januário pôs-se a passear pela sala,
na qual tudo lhe atraía a atenção. — A mobília simples e rústica, o sítio, as
árvores apinhadas pelas planícies em graciosos grupos, as palmeiras com seus
leques abanados pela aragem, os penedos, as águas que serpejavam sonoramente
retratando o azul do céu, tudo lhe trazia à memória doces e vivas lembranças,
que lhe eram tão caras! Parando ante um espelho, refletiu atentamente na
mudança de suas feições; e seus cabelos negros outrora, começavam agora de
alvejar; suspirou! Sentou-se; e gotas de lágrimas escoaram-lhe pelas faces que
iam a enrugar! — Depois ergueu-se, volveu os olhos em tomo de si, e como que
admirado do que via, fitou com atenção o olhar num painel que pendia da parede,
e cuja cena tocante lhe oferecia um espetáculo que lhe partia o coração. — Era
um paulista que junto da sua consorte gozava da frescura da tarde sob uma
latada de passiflora coberta de rosas da Paixão e de frutos: escutava ele cheio
de recolhimento a leitura das Horas, a que procedia uma linda menina; e voltava
da caça um jovem, montado a cavalo, tocando a buzina, e precedido de cães
veadeiros. — Declinava o sol entre as nuvens do horizonte e os derradeiros
raios douravam os cumes das montanhas e dilatavam a Sombra das árvores nas
planícies.
Era ele, sua esposa e seus filhos! — Não havia dúvida, esse
quadro era seu; conhecia-o por esses rasgos de pintura que pertenciam ao pincel
de uma donzela da sua vila, que qual a célebre pernambucana D. Rita Joana de
Sousa, entregava-se a esse passatempo para quebrar o tédio do vagar do tempo; e
que lho deixara em Sorocaba, na sala da casa, lá pendente da parede!
De Sorocaba a Goiás! A Goiás!... Tão longe! E porventura não
estava ele aí? Mas que coincidência! que encontro! Como viria parar ele ali,
como?
E mil pensamentos borbulhavam na mente de Januário, que
sentou-se e começou de refletir mais seriamente.
— Talvez, disse ele consigo, conjecturando, talvez que minha
esposa se visse em grande necessidade e que o vendesse!
E pensava que a miséria, a miséria com todo o seu séquito
terrível, onde figuram todas as necessidades da vida com seus semblantes
mirrados e lívidos, e com os olhos de sangue, já fartos de chorarem, açoitasse
o seio da família, e assentava em si que necessário era volver-se a abraçá-la!
— Há tanto tempo! repetiu ele. Como os não verei eu,
esquecendo pesares de tantos anos por um momento de satisfação! Doce momento,
que tanto tarda, pois falta-me a sétima e última! E em vão a busco, em vão: e
eu jurei apresentar todas elas! Aonde se esconderá esse homem que deve à terra
um cadáver e a mim uma orelha? — O dono desta casa, continuava ele,
explicar-me-á tudo isto! Mas dissimulemos, que não me é ele desconhecido. Já o
vi, não sei aonde, e ele conhece-me, pois mirou-me desde os pés até a cabeça,
trajo por trajo, feição por feição! Quem será ele? Um anjo ou um demônio? — Um
anjo, que salvou porventura minha família da miséria, e a quem ela, agradecida,
mimoseou com este quadro — ou um demônio que o roubou, e que hoje o possui?
E a esse tempo, sem ter repousado, a fadiga tinha-lhe
desaparecido; e só almejava saber como viera ter aquele quadro à Goiás, como se
chamava o hóspede, e depois partir; — ou com o seu colar de orelhas completo, —
ou em busca de mais uma, uma só!...
Pensando assim, agitava-se todo com tais reflexões, tremia
com tantas incertezas; quando um menino tão galante, quanto pode ser um menino;
tão vivo, tão espertinho, quanto se pode ser na tenra idade, a pular, a saltar,
a rir-se de inocência e de alegria, ganhava a sala.
— Meu Deus! exclamou Januário encarando a criancinha, como
que para reconhecer-lhe um a um os contornos da fisionomia, é o retrato de
minha mulher... De minha mulher!... É seu filho, talvez... Oh!... As
coincidências se multiplicam!... A fisionomia desse homem que não me é
inteiramente desconhecida... e a fisionomia deste menino tão semelhante à de
Ana... e o meu quadro!... Oh! que o coração se me despedaça em cem partes!...
E o inferno com todo o seu oceano de chamas se lhe entornava
dentro do peito! E os dentes rangiam, e os músculos contraíam-se, e os olhos
revolviam-se em órbitas de fogo, e as artérias pulsavam com veemência, e ele
todo agitava-se, comovia-se... até que Pouco e pouco, como procurando
tranquilizar-se, aproximou-se do menino, que ria como o anjo da alegria e
inocência; buscou afagá-lo, e o menino sempre a rir pôs-se a brincar-lhe com os
cabelos da longa barba embranquecida. Tomou-o ele afinal nos braços, sentou-o
sobre a perna, e amimando-o, perguntou-lhe como se chamava.
E uma voz tocante, harmoniosa, sensível, respondeu
ternamente:
— Januário.
— Januário... repetiu Garcia, erguendo-se e largando o
menino sobre o pavimento. — Que ultraje!... Que escarnecer de mim!... Não resta
mais que duvidar nem conjeturas a tirar; é seu filho!... O tempo e os trabalhos
me aumentaram os anos, branquearam esta barba, que me cresceu até o peito: o
sol amorenou-me a tez e mudou-me as feições; o brilho dos meus olhos
extinguiu-se no meio da aluvião das lágrimas, e a voz enrouqueceu-se... A
notícia de minha morte espalhou-se talvez de boca em boca, e de há muito que me
acreditam de envolta com a poeira dos mortos... Desfigurado, não tido por entre
os vivos, quem mais me há de conhecer? Ao verem-me os vizinhos, tomar-me-ão por
novo hóspede, perguntarão por meu nome, e admirar-se-ão quando me ouvirem
dizer: — Eu sou Januário Garcia! — Não me conhecerão, mas eu conhecer-te-ei,
mulher!... Observada continuamente por mim, não deixarei escapar uma palavra...
não deixarei perder o mínimo gesto, não deixarei fugir o menor movimento, e
depois... Ah e depois que tremas! Ana, Ana, tu não saberás que os ultrajes de
uma mulher a seu marido custam a vida? Que o sangue, que tão somente o Sangue,
pode lavar a nódoa da desonra que o difama entre os mais homens? Tu não o saberás?
Eu pois te ensinarei!...
E o menino, sempre a rir-se, o olhava ternamente; porém
Garcia aproximando-se da janela, conservou-se pensativo sem dar fé do que se
passava em torno de si; porque a inspiração do inferno borbulhava-lhe na mente
e refletia-lhe do coração.
De repente sentiu passos, voltou-se e deu com o dono da casa
que participava-lhe estar pronto o almoço.
— Sinto-me incomodado; e por esse motivo desculpar-me-eis
que não me utilize do vosso obséquio.
— E não quereis alguma coisa?
— Nada absolutamente; desculpai-me, que quando estou
incomodado não costumo empregar meio algum para aliviar-me.
— Fazei o que quiserdes.
— E já que sois tão franco comigo, quisera antes de
retirar-me, saber com quem aqui me acho.
— Era essa, amigo, disse o hóspede, justamente a pergunta
que tinha que fazer-vos, pois que por certo não me sois inteiramente
desconhecido, e já vos vi não sei aonde. Porém, quanto ao que me diz respeito,
dir-vos-ei em poucas palavras, o que basta. Procurei por algum tempo ocultar o
meu nome e a minha pessoa, povoei a solidão, mas hoje, isento de todo o perigo
com a morte do mais terrível dos homens, o qual por indisposição e antipatias
me jurara ódio implacável, posso sem temor dizer quem fui e quem sou, pois que,
assaz conhecido nesta terra, sou estimado de todos, e gozo de reputação como
homem honrado.
— Sois filho do Brasil, não é assim?
— E nasci em Itu.
— E esse homem que já não existe, cuja morte vos fez exultar
por vos ver livre do mais terrível dos homens, era de Sorocaba?
— Justamente; e acaso o conhecestes?
— Januário Garcia!
— E ainda hoje me horrorizo ao ouvir-lhe o nome!...
— E pois não vos horrorizais de vê-lo!
— Como?... O que dizeis?...
— Sim, ele chamava-se Januário Garcia, e vós sois Pedro
Luís...
— Ah! sabeis meu nome?
— E eu sou de Sorocaba!...
— E aí me vistes talvez, não?
— E eu sou Januário Garcia!...
— Januário Garcia... Vós?... Que perdição para mim!...
— Pedro Luís!... Pedro Luís, não me falta mais nem uma!...
— Januário Garcia, há dez anos que...
— Que assassinastes meu filho...
— Os outros foram...
— Aqui estão suas orelhas!... Seis orelhas!... Mas os
assassinos foram sete, falta-me pois uma... e essa, dar-me-eis vós!... Meu
corpo ao inferno, minha alma ao demônio, se vo-lo perdoar!... Pedro Luís,
resta-vos um instante, e nesse instante é para encomendar a Deus a vossa
alma... A oração simbólica dos apóstolos!... Dizei-a de joelhos... E o meu
Juramento há de cumprir-se em toda a sua extensão...
— Perdão, Januário, que vos cega a ira!...
— Nem em nome de Deus; pedis em vão!
— A hospitalidade, Januário... E vossa filha... Ah esperai!
— Não me escapareis... Meu filho também implorava em nome de
Deus, e vós, canibais, o ligáveis a um tronco; ele chorava, e vós, abutres de
carne humana, lhe arrancáveis a pele; ele gemia, e vós, onças esfaimadas e
carniceiras, lhe decepáveis membro por membro; e ele dava o último arranco, e
vós, algozes da barbaridade, lhe tiráveis as entranhas ainda palpitantes!
Ah!vós não sabeis por certo em que mãos horríveis caístes!...
— Perdão por piedade!
— Não!
— Eu sou vosso...
E Januário Garcia sacava a faca, a terrível faca do seio da
sua vítima, que estrebuchava inundada de sangue, quando uma mulher pálida,
vestida de branco, com os cabelos soltos, e arquejando horrivelmente
precipitou-se sobre ele.
— Que fizeste?...
— Paulina, minha filha!...
— Meu pai... Ele era meu marido!...
E caiu desfalecida em seus braços.
— E jurando trazer-me uma orelha de cada um dos sete,
partiu... E há já dez anos que o espero; há já dez anos que ninguém me dá notícia
dele... — antes propagam o boato de sua morte... mas não o posso acreditar
porque o coração não mo diz assim.
Desta sorte falava na pobre sala da sua casa de Sorocaba, a
mísera mulher do implacável paulista, conversando com Manuela, senhora de rico
fazendeiro, há pouco estabelecido na vizinhança: — nessa sala que tão rica
fora, e cujas paredes, com as pinturas envelhecidas, conservavam alguns lugares
mais avivados, que apontavam à memória os lindos painéis de que se achavam
despojados.
— Falastes-me de uma filha que tínheis? disse Manuela.
— Paulina era o seu nome, respondeu Ana. Há oito anos que um
homem que aqui chegou, que me pediu hospitalidade, dizendo que seguia para o
interior; não lha pude negar, pois que no tempo de meu marido era esta casa uma
como osteria de peregrinos, que procuravam-no pela probidade e honradez de seu
caráter, se bem que propenso à uma taciturnidade misteriosa, talvez gerada da
meditação em que se engolfava de ordinário e da perseverança e energia com que
concebia, planejava e executava os seus mais subidos projetos.
“Conversando expus-lhe sem rebuço e com singeleza, continuou
Ana, a miséria em que me via com a ausência de meu marido, a necessidade que
tive de vender as mulatas, minhas mucamas, e de desfazer-me das minhas crias.
Ele ouviu-me com mágoa, e consolou-me; e querendo de alguma forma
beneficiar-me, mostrou-se agradado de um quadro que pendia daquela parede, o
qual representava cenas de nossa família, e era composição de uma moça destes
arrabaldes; e oferecendo-lho eu, não o quis aceitar sem que me retribuísse
generosidade por generosidade.
— Mas Paulina? Não falais de Paulina, de vossa filha, cuja
sorte tanto me interessa como se a conhecesse? replicou Manuela.
— Tudo vos direi. Demorou-se esse homem em minha casa por
alguns dias, e com vários pretextos meses inteiros; e como tivesse tempo para
observá-lo, notei em seus olhares certa inclinação amorosa, nesse dizer
simbólico de amor, que se não pode encobrir, e que ele deixava entrever a seu
mau grado, para com Paulina. Rodeada de necessidades, antevendo que breve a
miséria vir-me-ia bater à porta, talvez para evitar que um futuro de angústias
pesasse sobre mim, propus-lhe um casamento em breves termos. Afinal ele anuiu
de muito boa vontade. Passaram-se então alguns dias em preparativos; e tudo
nele era apressar o momento do consórcio, e conquanto essas instâncias me
fizessem recear algum tanto de um não sei quê de misterioso, contudo encontrava
desculpas, quando mais calma e tranquilamente meditando, via que era esse todo
o desejo dos noivos. Mas no entanto há certos saltos inopinados do coração,
certas ideias inesperadas que acometem a imaginação de improviso e que as mais
das vezes deixamos passar desapercebidamente.
— E prontos que foram os preparativos, seguiu-se algum
incidente talvez, não?
— Algum incidente!... Seguiu-se o casamento. Não é, porém,
D. Manuela, sob o aspecto de calamidades que o infortúnio se nos antolha. Esse
homem, que sacudindo o poncho orvalhado da chuva, bateu à minha porta, pediu-me
hospitalidade, sentou-se à minha mesa, e dormiu sob meu teto, mal sabia eu quem
era ele. Há certas impressões bem extraordinárias!...
— Continuai que há muito que me tendes suspensa.
— Sempre que me voltava para ele, com o que primeiramente
deparava era com a bicha que lhe pendia da orelha, e que imprimia em mim um não
sei quê de desconfiança...
— E bem extravagante era essa circunstância!
— Extravagante!... Era um reflexo revelador do futuro!
— Enfim, prosseguiu Ana, tudo se preparou da melhor maneira
que me foi possível; dirigimo-nos uma tardinha à casa do vigário, e aí no seu
oratório se receberam os noivos, ouviram as bênçãos do céu, e eu de joelhos
rezava para que o Senhor fadasse em bem a sua união... quando senti
espargir-se-me pela alma frio estremecimento, como que uma mão de ferro me
apertas se o coração no peito e mo esmagasse; as trevas escureceram-me os
olhos; e era a dor, era o desgosto, era o pesar, era o horror, era tudo isso em
uma só coisa, que não há nome que a exprima...
E ao recordar essa agonia as lágrimas caíam-lhe em fio, e os
soluços desprendiam-se-lhe dos lábios; mas prosseguiu.
— Uma voz terrível que partiu sem que soubesse donde e como,
e que soara no oratório me lançou em uma aluvião de males privando-me do
sossego de tantos dias e noites como o brado da vingança:
“Esse homem, gritaram, deve uma orelha a Januário Garcia!”
— Era um dos sete!
— É verdade, era um dos sete. O menos criminoso, porém o
mais afoito de todos, que vinha à minha casa colher notícias de meu marido, e
que contraindo essa união sagrada com nossa filha, se supunha isento da sua
vingança!
— E Paulina?
— Que havia de fazer? Habituar-se a olhar para um dos sete
assassinos de seu irmão e pedir ao céu que desviasse a fatal faca do peito de
seu marido. Não estava ele, porém, muito seguro da sua sorte, pelo menos não o
afiançava eu, que sei até quanto um paulista se esforça para cumprir sua
palavra; partiu pois, e partiu para tão longe que nunca mais ouvi notícias
suas.
— E vossa filha, D. Ana?
— Partiu com ele; e como era sensível à sua partida, não
quis despedir-me dela; quando vieram pela manhã comunicar-me que desejava
abraçar-me, mandei-lhe dizer que seguisse o seu destino, que eu ficava a rezar
para que se não perdesse de toda sobre a terra, já que não podia ser venturosa;
nunca, oh nunca mais!
— Talvez que o céu vos ouvisse e ela seja feliz.
— Não. Meu marido jurou, e o seu juramento...
Ah! praza a Deus que ao menos, quando a sineta do portão
retinir e anunciar a sua chegada, eu já não exista!...
Não acabava quando a sineta do portão soou fortemente.
— Quem será? perguntou Manuela.
— Deus de misericórdia, há dez anos que a sineta não retine
tão fortemente!
— E não ouvis o trotar de cavalo?
— E quem, quem será, minha Santa Virgem da Ponte?
Na maior ansiedade procuravam elas, através dos vidros da
janela, ver se descobriam alguém; mas a noite era em extremo escura, e portanto
impossível distinguir qualquer vulto que fosse, quando por um relâmpago que se
abriu nas trevas, viram que um cavaleiro se apeava junto à porta.
— Batem e os cães latem.
— E tão violentamente!
— Quem está aí? perguntaram de dentro.
— Abre, Ana, respondeu uma voz áspera e rouca.
E a porta gemeu sobre os gonzos; e um indivíduo embuçado em
um poncho desbotado, puído como o manto de um mendigo que aí vai de porta em
porta chorando suas lamúrias, trazendo sobre a cabeça já velho e roto chapéu de
largas abas que lhe roçavam os ombros, descalço e enlameado até às curvas, com
a baluda pendente a tiracolo, entrou, cumprimentou a Manuela e apertou Ana em
seus braços contra o coração.
Era ele, era Januário Garcia, o infatigável paulista, que
voltava à sua casa, respirando de afã, contente do seu triunfo, satisfeito de
sua vingança, e rico de despojos de suas vítimas.
— Ana, bradou ele a sorrir de prazer e com os olhos ondeados
de lágrimas.
— Januário!... exclamou a mulher estreitando-o nos braços,
não sem alguma repugnância.
— Há tanto tempo.
— Há dez anos!
— E o que fizeste durante tão longo espaço?
— O que havia jurado.
— Quê? E será possível, meu Deus!
— Ei-las aqui!
Um brado de terror partiu de todos os lábios, retumbou por
toda a sala, e Manuela escondendo os olhos com as mãos, recuou espavorida como
se a mão de um fantasma a repelisse, e caiu sobre uma cadeira, que estalou,
quebrando-se. Ana, não obstante estar já de há muito preparada ao golpe fatal,
à terrível aparição, não pôde contudo deixar de olhá-lo com gesto de terror.
— Ei-las aqui, bradava ele, ei-las aqui para substituírem o
quadro que tão de coração estimava, e que tu vendeste! Sim, Ana, aquele quadro
que fiz pintar com tanto trabalho, que não havia aí quem mo preparasse,
recordava a inocência, os gozos pacíficos e a tranquilidade doméstica de nossa
família, e estas orelhas mirradas e secas depois que as colhera a mão da morte,
estas orelhas recordar-nos-ão coisas muito terríveis, aí suspensas no mesmo
lugar que ainda nos mostra o vivo das tintas tanto tempo resguardadas por ele!
Recordar-nos-ão a morte de um filho, o casamento de uma filha, e dez anos de
fadigas, de trabalhos, de errores e desvios. Ei-las aqui!
— Ah tira-mas da vista! disse Ana toda contaminada de
horrorosa repugnância.
— Tirá-las da tua vista! Como difere nosso sentir! Ah
lembrem-te elas o filho, lembrem-te elas que sete réprobos o esfolaram vivo, e
depois cortaram-lhe membro por membro, que nada os fartava do nosso sangue,
como se a sede da febre de assassinos os devorasse; lembrem-te elas que são
despojos de suas vítimas, e regozijar-te-ás comigo.
— Por Deus, pelo descanso eterno de teu filho, eu te peço,
poupa-me a esse espetáculo. Depois da ausência de dez anos, não haverá mais em
que falar?...
— Durante dez anos de nada mais quis saber que não fosse
notícias dos assassinos; e porventura não nos darão estas orelhas doravante
eterno assunto para nossas conversas? Não serão elas daqui em diante o melhor
ornamento de minha casa? Aos prodígios do painel de uma mulher, substituem as
valentias da faca de um homem, que não do assassino. A riqueza maior que possuo
adquirida com o suor das fadigas e das vigílias de dez anos! Assassinos! Oh!
Eles bem sabiam quem eu era quando o amaniatavam ao jambeiro, e entretanto
quiseram desafiar-me as iras! Viram a prudência em que eu vivia, e pensaram que
era fraqueza; tomaram o sono do leão por debilidade de forças; acordaram-no com
arremesso furioso, e hoje dormem no leito da morte o eterno sono! Muitos deles
sem uma cruz, que lhes lucre um ai por seu morrer, uma oração por sua alma! Nem
sempre seria o pacífico Januário Garcia sorocabano, o amigo de seus
paroquianos, tão respeitado por eles, e o amante de sua família, tão amado por
ela.
Assim dizendo, largou o chapéu, pendurou a sua baluda à
parede, desembrulhou-se de seu poncho, e arrastando uma cadeira, sentou-se
junto de Ana. Manuela que tornara a si, que mais a incomodara a queda, com o
quebrar da cadeira, estava recostada ao velho canapé, e algum tanto alentada;
se bem que o frio do susto lhe coasse ainda nas veias, e a palidez lhe
desbotasse as faces.
— Olha, Ana, disse Januário apresentando o terrível colar, e
escuta a história das sete orelhas.
— Oh não, por piedade, suplicou ela pondo as mãos e
levantando-as para o céu; oh não; deixa-me na incerteza; não ouves? não
percebes?... Na incerteza, sim... que ao menos ignore tudo... Na incerteza,
Garcia!...
— Sim, na incerteza, na incerteza, quando eu jurei não
voltar ao seio da família sem sete orelhas; quando torno depois de dez anos, e
quando tu não ignoras que o paulista perde bens, deixa a herdade, e sacrifica
todas as comodidades, afronta um a um todos os perigos, arrisca a vida, mas
cumpre o que promete! E entretanto queres ficar na incerteza!
— Ah, Januário Garcia, é a única coisa que te peço nesta
vida.
— Pobre mulher! E ainda a instar, sem que se regozije
comigo! Enfim, não conhecerás dentre estas orelhas aquela que...
— Não... não... Januário.
— Aquela que tem uma bicha pendente com uma figa...
— Ah!... Não é verdade!...
— Depois de dez anos e de tanto procurá-lo, fui enfim
encontrá-lo tão longe, em vila tão remota... Vinguei a minha afronta: ei-la
aqui; é de Pedro Luís, do assassino de teu filho e do marido de tua filha!...
E um ai, um ai de morte partiu dos lábios de Ana que caiu
inanimada e fria, aos pés de Januário.
Forcejando por erguer-se, tomou Manuela, trêmula, como
estava, o candeeiro, e aproximou-se; Januário, inclinando-se, tentou
alevantá-la, mas ela abriu os olhos, volveu o rosto, suspirou languidamente e
tornou a cerrar as pálpebras; Januário, recebendo o candeeiro, chegou-se a
ela...
— Ana!... Ana!... exclamou ele
— Ah está morta! murmurou a amiga apertando-a em seus braços
e chorando.
— Morta! Morta! repetiu Januário ternamente e olhando-a com
a mais viva penetração de amor e compaixão.
— Desgraçada família!... balbuciou Manuela.
— Desgraçada, sim! repetiu ele.
E de repente largando o candeeiro suspendeu a enfiada de
orelhas e bradou horrivelmente:
— Mas que importa? Agora pode soar a trombeta do dia de
juízo; eu me apresentarei a Deus com estas orelhas — Deus me julgará!
Alguns anos depois uma mulher cujas feições denotavam ainda
a beleza da mocidade, e um moço trajando pesado dó, de joelhos e mãos postas,
olhos em lágrimas, oravam tristemente ante a eça que sustentava em féretro.
Os sinos da vila dobravam funebremente.
Era Januário Garcia que se tinha finado, deixando ao inundo
a sua tremenda e horrorosa memória, e o terrível cognome: — O sete orelhas.
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